O coronavírus, na sua mais recente numeração, foi descrito como um vírus que provoca uma compulsão dirigida à compra infrene de papel higiénico. A generalização do fenómeno à escala planetária permite a cada língua denominá-lo. Capazes como nenhum outro povo de jungir palavras para encapsular novos conceitos, os alemães definiram o fenómeno como Hamsterkauf. Já os anglo-saxónicos, sempre preocupados com a manutenção das aparências, apodaram o mesmo comportamento como panic buying.
A manifestação dos efeitos da doença convocou a ética e diversas escolas responderam à chamada. Os moderadamente exaltados limitaram-se a qualificar como “corona-idiotas” os que se afastavam das prescrições normativas distribuídas generosamente pelas “autoridades”, a começar pelas novas magistraturas de influência, ainda sem assento constitucional, mas com cadeira cativa nos estúdios de televisão. Já a escola extremista, atenta à insuficiência do name and shame televisivo, passou à acção directa, apostrofando os que se deslocam pela via pública sem ser em marcha de urgência, distribuindo qualificativos que, em tempos de outra felicidade, guardavam para as mães dos árbitros de futebol em dia de derrota da sua equipa. Em Espanha, estes patriotas exercem o mester a partir das varandas e balcões das respectivas casas, pelo que são crismados como “balconazis”.
A “corona-etiqueta” obriga à tosse à Drácula, em que a boca é enfiada por baixo do próprio sovaco, numa coreografia inspirada no uso da capa pelo conde homónimo. São agora permitidos novos mínimos de sociabilidade. Já não é preciso fintar pessoas insuportáveis, pretextando chamadas telefónicas inexistentes. Avistada uma, podemos atravessar a rua a correr e, já no conforto da distância, declamar a obrigação de comportamento socialmente responsável. Mas nem tudo são rosas. A diminuição da poluição causada pelo confinamento não permite fruir as essências florais da Primavera, substituídas pelos perfumes da pandemia: álcool em gel para os possidentes, lixívia diluída para os menos abastados.
O confinamento trouxe sequelas físicas: o “coronatan”, um bronzeado às riscas, resultado das muitas horas passadas em marquises com persianas de má qualidade, e a “cobesity”, fruto das marchas forçadas em direcção ao frigorífico e do levantamento de pacotes de bolachas. Piores são os covid haircuts, feitos em casa pelo Fígaro homiziado no seio de cada família.
A nova era da humanidade mantém os acrónimos a.C. e d.C., mas o referente passa a ser o coronavírus, correspondendo o d.C. à data do primeiro diagnóstico, 1 de Dezembro de 2019. O coronavírus deu origem à primeira infodemia, com um excesso de desinformação, directos televisivos às portas dos hospitais, tão infindáveis quanto inúteis, conferências de imprensa diárias sem qualquer conteúdo informativo e manifestações abundantes de verdades alternativas. Não faltam concretizações do “Coronagate”, com várias versões conspirativas para a origem do bicho. Et pour cause, o Conselho de Segurança da ONU ainda não conseguiu decidir sobre a coisa, desde logo quanto à existência de uma ameaça à paz. China e EUA estudam cada vírgula da futura resolução com um veto numa mão e, na outra, a preocupação posta por Tucídides na escrita da História da Guerra do Peloponeso. Tucídides contraiu a peste de Atenas e sobreviveu. Dos dois fazedores de História em 2020, um pretende sobreviver às eleições de 3 de Novembro. O outro pretende continuar a viver sem eleições.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990