Tão certo como respirar ela dizer que “Fazer cinema é saber gerir as vozes que vêm de todo o lado.
Também é saber ter um inimigo.”
Revi-me literalmente nestas vozes, mas pela força da Poesia.
Escrever poesia é saber gerir as vozes que vêm de todo o lado.
O inimigo não é, o inimigo são.
As vozes, as sombras, as tentações, a desilusão, o chão que nos falha, o ar que nos mata.
Talvez para mim o maior inimigo seja descobrir quem é que um quer que o outro seja.
Se assim for, o meu inimigo, a dúvida, a incerteza é do tamanho de um Adamastror, e o pior é que pulsa a toda a hora por dentro. Entre Fiordes.
Este livro tão inesperado como florido, serviu-me para buscar o cinema como o sol num dia limpo. Como o sol no nó da madeira. Porque está profundamente cruzado com a vida como ela é.
Uma data de leituras do avesso a partir de imagens vorazes que se nos acorrentam, também nos libertam.
Quando se lê um poema em quantas partes o dividimos?
Quando se lê um poema em quantas partes o desejamos?
Se alguém perguntar a um actor que peça mais gostou de fazer ou em quantas partes ela caberia inteira será como perguntar se só tem saudade de alguns mortos, como eu que tenho saudades de ouvir colada a mim qualquer trecho de Vitor Hugo Pontes ou Shakespeare com medo de perder uma palavra ao alto que seja.
Porquê ler um livro assim?
Segredos de leitura são quase cartomância, que nem o Professor Rakar desvendaria.
Estou certa!
A vida também é as coisas irem perdendo o seu mistério. Mas sobra sempre tanta coisa. (39)
O mistério é qualquer coisa que o leitor fará por nunca perder.
Partiste como quem nunca chegou.
Este foi o único verso que um amigo gostou de um longo poema que escrevi.
O único verso que sugeriu que eu de novo partisse e desenhasse um caminho. Uma promessa. Um labirinto.
Se o leitor continuar a ler outros livros que não livros como este, a ver filmes, que não filmes como este, como é que eu irei pegar neste verso e escrever outro poema completamente diferente?
Se o mundo insistir em amar como amou até agora, como iremos amar todos daqui em diante?
Como pegar nesse verso? Por onde pegar?
Se eu escrevesse, diria o leitor. Se eu escrevesse.
Se o leitor escrevesse, eu conheceria o eco dos seus passos no soalho ao sair da cama, a melancolia com que levaria à boca um cigarro, a primeira água da manhã, a solidão das horas que só as horas a noite revira, o vazio da cama onde o sopro esvazia a solidão.
Se continuar a afastar para longe cada palavra que me socorre, a que distância ficaremos um do outro querido leitor? Mentiria se dissesse que é-me igual não gostar ou não o que escrevo.
Pensei não ter forças para escrever outro poema.
Para reescrever o mesmo poema. É sempre o mesmo poema. É sempre o mesmo medo.
Como se reescrevem os dias? Os lutos? As perdas? Os filhos? A saudade?
Como se reescreve a quarentena?
Teria mais forças para permanecer denso o amor não fosse a incerteza?
Não, teria mais luz. Só o amor como as imagens, o cinema para cair braços adentro do leitor, do espectador vivo e vozraz que afinal todos nós somos, nenhum mais que outro.
Em tempos de guerra não se limpam espingardas, em tempos de guerra faz-se o amor, o cinema, o teatro, a poesia.
A Teresa Villaverde diz que temos que ouvir quando nos falam sem som.
Nada mais certo.