O futuro já não é o que era


Os sonhos e objetivos de cada um serão alterados pela nova realidade que traz um novo futuro, enquanto o processo de retoma vai, obviamente, voltar a acentuar as diferenças ideológicas.


1. Todo o ser humano sonha e perspetiva algo para o futuro, numa perspetiva normalmente positiva. Pode ser para si, para os seus, para toda a humanidade, para animais ou, genericamente, para o planeta. O sonho, a expetativa positiva de algo, a esperança está presente na vida de cada um de nós. Sejam coisas grandiosas ou pequenas.

Nos dias de pandemia mundial que vivemos, uma das coisas que racionalmente muda é o que ambicionamos e antevemos. Estamos suspensos. A realidade futura vai ser diferente. Mas não sabemos como e em que medida. Há tantas incertezas, tantas coisas a acontecer, tantas mudanças, tanta informação contraditória, tanta opinião sobre as causas e os efeitos que não é possível manter os mesmos sonhos e projetos. Serão poucos os adultos que não pensam em ajustamentos subsequentes ao que está a acontecer. Vivemos um novo presente. Agora, sim, podemos dizer que vem aí um novo futuro.

A pandemia tem dado mais espaço a um conjunto de teorias sobre os caminhos da humanidade, que no quotidiano eram discutidos como uma realidade imutável. Era o caso da globalização e da deslocalização de empresas, cujos efeitos perversos estão agora patentes. Hoje há de tudo. Catastrofistas, tremendistas do castigo divino, fatalistas. Muitas coisas vão ter de mudar, como sucedeu depois das pandemias e das guerras mundiais. Daí que se possa dizer que o futuro já não é o que era. A realidade trazida pelo vírus está sistematicamente a ser alterada. Tanto pode ter uma, como duas, como muitas vagas. Os seus efeitos não são homogéneos nos diversos sítios e sociedades, acentuando ainda mais diferenças sociais e políticas. Os seus impactos vão prolongar-se no tempo e na economia. Surgirão novas realidades que vão mudar os sonhos e as perspetivas de muitos milhares de milhões de pessoas. O menor dos males seria haver um reequilíbrio que permitisse tirar ilações e alterar um pouco do muito que está mal. O mau seria voltarmos exatamente ao ponto em que estávamos, sem nada mudar. O pior seria o caos, o salve-se quem puder e o alastrar da doença. As notícias mais recentes permitem algum otimismo. Mas mantermos rigorosamente os mesmos sonhos e objetivos, sem tirar consequências da pandemia, não é viável nem positivo. É irresponsabilidade.

2. Como era previsível, está a acentuar-se a pressão para acelerar a retoma económica – independentemente de a pandemia estar ainda num nível muito preocupante. A situação acontece em Portugal e mimetiza a de outros países. Há, porém, uma coisa que é preciso esclarecer para não cairmos em atitudes cínicas e demagógicas. A retoma à pressão tem muito a ver com os apoios concretos que chegam às populações. Em Portugal verificamos que se conseguiu um ataque competente à doença e à crise sanitária, embora não haja razões para embandeirar em arco. Como diz o povo, ainda a procissão vai no adro. Houve e haverá, no entanto, falhas gravíssimas, como a circunstância de ter passado mais de um mês entre o apelo da OMS para iniciar a compra de material de proteção e o primeiro despacho do Governo nesse sentido – uma situação indesculpável, como foram o tempo que levou a montar um hospital de campanha em Ovar, a questão das máscaras ou o manifesto desleixo em controlar a situação nos lares, que é ainda uma desumanidade. Mesmo assim, há que dar nota positiva ao combate técnico e cívico à doença por parte da comunidade nacional no seu todo.

Quanto às medidas de apoio à economia, é preciso ser claro. Praticamente, não existem no plano do concreto, ou seja, junto do cidadão e das empresas mais pequenas. Há muito papel, muitos planos, muita legislação, muita burocracia, mas poucos resultados práticos ao nível do cidadão. Nesse campo, Portugal não se distingue pela positiva. Antes pelo contrário. O auxílio financeiro não chega a quem precisa e não esteja em teletrabalho ou em rotação. É crónico, aliás. Ainda hoje há gente que espera por apoios prometidos para incêndios de há dez anos ou para as cheias da Madeira. Como a situação não se vai alterar, a principal opção empresarial e a de cada cidadão ativo vai ser a de voltar rapidamente à vida laboral, ainda que queimando etapas. Ao contrário do que se pensa, poucos serão aqueles que resistirão ao regresso ao trabalho, a não ser que tenham dinheiro, que pertençam a grupos de risco ou que tenham agora de cuidar de familiares fragilizados ou doentes. O equilíbrio entre a retoma e o confinamento vai ser, a partir de maio, o grande desafio nacional. Como aqui se escreveu na semana passada, o bom senso vai ser um elemento essencial em tudo o que tiver a ver com a pandemia e as suas consequências. Até agora tem havido quanto baste da parte do Governo e dos agentes políticos. É preciso manter pontes e diálogo para acertar medidas de retoma. Mas não haja dúvida que é a partir desse novo ciclo que as divergências políticas vão voltar a surgir, mostrando as diferentes opções ideológicas que condicionam os planos que cada um proporá. Esperemos que haja a capacidade de encontrar um denominador comum, mas não vai ser fácil. Um ponto positivo é a intenção de António Costa de não ir pelo caminho da austeridade, como ele reafirmou ontem. O problema é que pode não haver outro, porque ele próprio a aplicou nos últimos anos, embora com a rara mestria de a suavizar com o seu otimismo e a sua máquina de propaganda sempre bem afinada.

3. Os comportamentos das massas são sempre interessantes de analisar. Pouco antes da chegada do vírus e no início do confinamento mais duro, choviam anedotas, vídeos e charlas sobre a situação. Com o tempo, diminuíram substancialmente. É um sinal. Não da inesgotável criatividade humana. Mas de saturação. Este não é dos graves, mas dá que pensar nos outros que podem surgir por causa da saturação, do isolamento e, sobretudo, da pobreza.

 

Escreve à quarta-feira