“Costumo dizer um velho ditado popular: quando o pobre tem fartura, não a chega a gozar. Agora, com o combustível a um preço tão baixo, não podemos sair de casa”, diz entre risos Leonor Afonso. E se há pessoa que tem acompanhado de perto a descida dos preços dos combustíveis, é ela. Há 24 anos que Leonor é uma das quatro funcionárias da loja da BP de Estarreja. Estamos no posto de gasolina que se situa na Estrada Nacional, junto à Prozinco, empresa especialista em metalomecânica e recuperação de bilhas de gás. Uns metros mais à frente, como quem segue para o Porto ou para Avanca, está a Quimiparque, um dos maiores parques industriais do país.
Na tarde em que o i por ali passou, na semana passada, apenas encontrou um cliente que, depois de abastecer o carro, em pré-pagamento, estava à espera do seu café. “Hoje, isto está muito calmo”, confirma a funcionária. Ainda mais se tivermos em conta que são sete da tarde, uma das costumeiras horas de ponta no posto de abastecimento. “Agora, a maior parte das pessoas só vem aqui beber café ou comprar tabaco”, continua Leonor.
O serviço mudou muito na BP desta cidade do distrito de Aveiro. Devido à pandemia do novo coronavírus, a loja passou a funcionar de porta fechada e as interações com o cliente passaram a ser limitadas à gaveta de emergência. “A nossa forma de trabalhar mudou bastante. Agora estou a aceitar muito melhor mas, no princípio, parecia uma transtornada ali dentro da loja, sentia-me dentro de uma gaiola”, confessa a funcionária. “O nosso serviço sempre foi direto com o cliente e, agora, esta proibição, apesar de ser para o nosso bem, limita-nos bastante. Tento o melhor possível apoiar o próximo que está do lado de fora, porque também precisa da nossa ajuda. Mas cria um sufoco esta separação, não só por estar fechada, mas para nos expressarmos ao cliente através do vidro. E isso, parecendo que não, deixa a pessoa alterada. Havia momentos em que falava ao cliente através do vidro e sentia-me dentro de uma prisão”.
Maria João, também funcionária deste espaço, abordada pelo i noutra ocasião, concorda que a comunicação se tornou uma das maiores dificuldades geradas por esta nova forma de trabalhar, especialmente quando se trata de lidar com a terceira idade. “Em relação aos nossos clientes, fico com muita pena dos velhinhos que, praticamente, só saem de casa para ir aos supermercados ou para pôr combustível, todos protegidos com luvas e máscaras”, começa por explicar. “Tenho de repetir várias vezes as indicações pelo vidro, porque eles não me conseguem ouvir. Depois ficam nervosos, começam a tremer e deixam cair tudo no chão, o dinheiro e os cartões. Faz-me muita pena não os conseguir ajudar”, confessa. “Isto é tudo muito esquisito para nós, é uma guerra que não se vê e que ninguém ainda percebeu muito bem”.
Não é só a barreira comunicacional que torna este trabalho mais difícil. Já Marisa Melo, uma das funcionárias que trabalha há mais tempo neste posto, considera que não estão reunidas as condições de trabalho necessárias para trabalhar a partir da gaveta. “Os clientes reclamam do método de pagamento. Se estiver a chover, as pessoas vão-se molhar, assim como o seu dinheiro ou o nosso equipamento multibanco, mas isso é a entidade patronal que tem de resolver, não somos nós. Nós só temos de pedir desculpa e dar a cara”.
Para além de considerar que a gaveta mais não é do que um “desenrasque” para combater a situação, Carla Almeida, a última das quatro funcionárias que dão o corpo ao manifesto neste posto de abastecimento, considera que, embora a entidade patronal ofereça luvas e gel desinfetante, “não há condições de trabalho”. Por isso, opta por levar material de segurança de casa. “Tenho [desinfetante], mas fui eu que o comprei. Se quisermos ter algumas condições de trabalho temos de as levar de casa, porque a empresa não se tem disponibilizado e o que disponibiliza não é o suficiente para aquilo que precisamos”.
Maratonas dentro da loja Algo que as quatro funcionárias da BP de Estarreja apontam é a notória redução da compra de combustível. Quando questionadas sobre o que mais se tem vendido, a resposta foi sempre a mesma: café e tabaco. Contudo, com a porta fechada, isto significa mais trabalho para as funcionárias.
“Dentro da loja temos máquinas de tabaco e de café”, diz Leonor. “Antes, os clientes serviam-se sozinhos mas, agora, tenho de servir os clientes através da gaveta”, começa por explicar. “Há um ou outro que reclama do nosso serviço e já me faltaram ao respeito”, recorda Marisa. “Por exemplo, pela maneira como tirei o café ou porque o café não prestava”.
“Uma pessoa sai da caixa para ir buscar o café e estamos nisto o dia todo”, explica Leonor. “Às vezes vem um grupo de cinco pessoas que me pedem: ‘Tira-me cinco cafés’. E depois vem outro que pede: ‘Tira-me cinco maços de tabaco’. É um atrás do outro. Isto tem sido um stresse”, considera.
Lidar com o tabaco tem sido especialmente difícil para Leonor, uma vez que não é fumadora. “O cliente pede-me tabaco, eu tenho de o ir buscar, e, como não sou fumadora, tenho-me enganado várias vezes, o que gera chatices, tanto da parte do cliente como da minha, porque fico chateada”, confessa. “Fico revoltada comigo mesma porque não gosto de ver o outro a fumar e, ao dar-lhes o tabaco, parece que estou a incentivar os clientes a fumar. Isso mexe comigo, mas pronto, tenho de aceitar. Lá vou eu a correr buscar tabaco, entregar tabaco, buscar mais tabaco. Vão inúmeras pessoas à bomba só para esse propósito”, diz, lembrando que os cafés das redondezas estão fechados.
Já o combustível é que passou para segundo plano. “A gasolina levou uma queda muito grande, mas notei que aumentei as vendas de tabaco, deve ser por causa do stresse”, diz Carla, entre risos.
Stresse parece ser a palavra-chave nesta nova rotina das quatro funcionárias. Sair de casa todos os dias para trabalhar é uma grande incógnita, pois nunca sabem o que pode acontecer. “Os meus dias são um bocado assustadores”, confessa Maria João. “Saio de casa sempre com um bocado de medo. Tento que seja o mais normal possível, mas é assustador”.
Também Marisa se sente insegura. “Estou a trabalhar e a contactar com clientes e pessoas que não conheço de lado nenhum. Todos os dias vou trabalhar com algum receio e medo. Saio de casa, vou para o trabalho, saio do trabalho, venho para casa. Tenho as minhas filhas em casa. Corremos sempre este risco”, nota.
Apesar de o contacto ser o mínimo possível, há trabalhos que inevitavelmente obrigam as funcionárias a sair da loja. Nesse sentido, Leonor dá o exemplo de outro produto que também tem sido muito vendido nestes dias: as botijas de gás. “Tenho de sair da loja, entregar a garrafa de gás e explicar ao cliente para ter paciência, para ficar um pouco distante de mim, que é uma coisa que me custa, mas é sempre para um bem maior, e o cliente geralmente entende. Isto tem sido assim todos os dias”.
Marisa exemplifica como procede nesta atividade. “Eles estavam habituados a que as levássemos até ao carro, mas agora não o podemos fazer. Vou buscar a botija cheia, guardo a vazia, entrego-a ao cliente e desinfeto as mãos. É assim que temos funcionado. Com as outras colegas não sei, mas comigo ainda não reclamaram”.
Lidar com os clientes A opinião sobre os clientes também parece ser unânime: alguns compreendem o porquê de a loja estar a operar de porta fechada, outros não. “Há clientes que vêm ter connosco para fazer um pagamento e manifestam-se de uma forma educada, porque nós também tentamos transmitir tranquilidade de quem está a viver a vida um dia de cada vez”, conta Leonor. “Mas há outros que vêm revoltados e, por mais que sejamos simpáticas, esta revolta, que vem de casa ou do trabalho, acaba por ser descarregada em cima de nós. É uma mistura dos seus problemas pessoais com os do país”.
São vários os episódios lamentáveis que as funcionárias têm para contar. Maria João, por exemplo, recorda que no início do isolamento eram vários os clientes que exigiam entrar na loja, acabando depois por desistir e ir-se embora. “Logo no princípio havia um senhor que queria entrar à força toda na loja, e eu tive de lhe explicar que estamos num estado de pandemia e que ele não podia entrar. O senhor começou a cismar comigo que queria um café, eu disse que o servia pela janela e ele começou a tossir para cima da janela, a gozar comigo”.
Este tratamento, obviamente, tem repercussões nas funcionárias. “Chego a casa mais cansada psicologicamente, porque há pessoas que não compreendem esta situação e são indelicadas. Isso cansa-nos.”
Alguns clientes da BP de Estarreja ainda continuam a encarar este posto de abastecimento como um ponto de encontro, como foi o caso do senhor que aqui encontrámos a tomar café. Neste caso, o cliente respeitou as normas de segurança e o distanciamento social, mas alguns não o fazem. Há muitas pessoas que, relatam as funcionárias, ainda se dirigem a este posto para comprar cerveja. Depois vão bebê-la para trás da loja, um local mais resguardado onde é menos provável que a polícia as vá encontrar.
Apesar de o vírus estar a tornar a sua vida e das suas colegas mais complicada, Leonor confessa que todos os dias agradece por ele. “Independentemente de estar a causar muita dor às pessoas, acredito que vai mudar imenso a consciência de muita gente”, explica.
“Este momento de zelar e refletir em casa vai permitir a cada ser pensar duas vezes e dar mais valor aos outros”, diz, dando como exemplo o valor que os pais dão aos professores e educadores.
“Nós usamos e abusamos da terra e ela precisa de ter uma viragem para nós respirarmos e, como se pode ver, o mundo está a mudar. No final desta situação, depois deste mês a refletir, vão para a rua pessoas novas. Acredito que nem todos podemos estar nesta sintonia, mas esta é a minha maneira de ver. Cada situação oferece um ponto de reflexão e acredito que a maioria vai sair com uma consciência mais positiva e com vontade de mudar”.
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