Prisões, magistrados e cabos-de-esquadra


Tem-se assistido a uma crescente sedimentação, no seio das magistraturas e de alguns corpos policiais, de uma ideologia puramente securitária.


As Nações Unidas, o Papa, inúmeras ONG de relevo no plano europeu, entre as quais a MEDEL – associação europeia de magistrados participada pelas organizações de juízes e procuradores portugueses –, têm expressado a necessidade de medidas para evitar e controlar a propagação da covid-19 nas prisões sobrelotadas.

O Conselho da Europa, ainda recentemente, divulgou um documento revelando ser Portugal o segundo país com penas de prisão mais longas na Europa, salientando também que estas triplicam a média europeia.

Apesar destes apelos, dos números revelados pelo Conselho da Europa e, em geral, da racionalidade e contenção da lei aprovada pela Assembleia da República por proposta do Governo, alguns venturosos magistrados, invocando inclusive as suas responsabilidades sindicais, decidiram assumir posições públicas que procuraram pôr em causa as razões humanitárias daquela iniciativa legislativa.

A questão não será a da crítica técnica, sempre saudável e requerida, a algumas das soluções preconizadas, mesmo que tais tomadas de posição pareçam revelar algum desconhecimento sobre a história das leis de amnistia anteriormente promulgadas no país.

A questão reside, sim, na insinuação enviesada e politicamente orientada sobre as verdadeiras motivações que estariam na origem de tal proposta e, pior, na total falta de piedade que o pensamento de tais venturosos magistrados obviamente manifesta.

Tem-se assistido – é visível – a uma crescente sedimentação, no seio das magistraturas e de alguns corpos policiais, de uma ideologia puramente securitária que julga poder resolver os problemas sociais e económicos do país através do uso indiscriminado de medidas punitivas cada vez mais rigorosas e exemplares.

Longe vão os tempos em que as associações de magistrados se destacavam entre nós por uma análise crítica de tal visão primária e redutora do papel do direito e da lei.

Na altura, eram essas associações censuradas por setores do poder político pela assunção de uma atitude mais crítica quanto ao uso abusivo de medidas repressivas na contenção das contradições sociais, apesar dos excessos e crimes graves – que também os houve – praticados durante ações voluntaristas e irresponsáveis ocorridas nesse período.

Recordo, a propósito, a atitude exemplar e corajosa que então foi assumida pela direção do SMMP, quando do processo das FP-25 – processo que levou à necessidade de proteger permanentemente alguns dos magistrados nele envolvidos e que eram membros ativos daquele sindicato –, sem que, todavia, a sua linha de rumo na crítica antiautoritária e antissecuritária tivesse sido alterada ou sequer abalada.

Mas esses eram tempos de envolvimento dos magistrados – como cidadãos civicamente empenhados – nos rumos abertos pela democracia.

A ilusória assepsia ideológica desenvolvida, desde então, na vida política e social, no próprio ensino universitário do direito e na escola da magistratura portuguesa alterou, porém, essa abertura original dos magistrados e do seu movimento associativo em relação às ideias mais críticas – e autocríticas – da sua missão e posicionamento institucional na democracia.

Concomitantemente, assistiu-se à explosão mediática do escandaloso fenómeno da corrupção nas sociedades democráticas e ao significativo papel que no seu desvelamento tiveram muitos magistrados em alguns países europeus.

Esses processos puseram em confronto direto magistrados e detentores de cargos políticos, baralhando, em muitos casos, a perceção que uns e outros tinham, ou deviam ter, sobre a função e legitimidade de cada um deles.

Tais fenómenos e processos influíram, indubitavelmente, na formação de uma geração inteira de magistrados, tendo contribuído para um sentimento de autodefesa e para a sedimentação, no seu seio, de um empenhamento profissional preferencialmente tecnicista, rigorosamente funcionalista e, além disso, autocentrado.

Foi esse espírito que ajudou a fixar em muitos magistrados a aspiração mal escondida de um protagonismo redentor do poder judicial na sociedade, em contraponto com os vícios apontados, acrítica e indeterminadamente, ao poder e classe política como um todo.

Por via de tal ideia redentora – e todos sabemos aonde isso pode conduzir – afirmaram-se depois as ideias securitárias que dominam, hoje, setores importantes das magistraturas e influenciam mais gravemente muitos corpos policiais.

Aqui a justificação para certas tomadas de posição que, mesmo não vinculando muitos e muitos magistrados, não deixam de macular genericamente a sua imagem pública.

Reequacionar o que se passou e procurar encontrar caminhos que potenciem de novo a discussão e o espírito crítico e humanista no seio das magistraturas é hoje, mais do que nunca, fundamental.

Se assim não for, não haverá cultura e reformas democráticas que vinguem na justiça, pois todas elas serão olhadas com suspeição e interpretadas por alguns de acordo com os códigos mais retrógrados.

 


Prisões, magistrados e cabos-de-esquadra


Tem-se assistido a uma crescente sedimentação, no seio das magistraturas e de alguns corpos policiais, de uma ideologia puramente securitária.


As Nações Unidas, o Papa, inúmeras ONG de relevo no plano europeu, entre as quais a MEDEL – associação europeia de magistrados participada pelas organizações de juízes e procuradores portugueses –, têm expressado a necessidade de medidas para evitar e controlar a propagação da covid-19 nas prisões sobrelotadas.

O Conselho da Europa, ainda recentemente, divulgou um documento revelando ser Portugal o segundo país com penas de prisão mais longas na Europa, salientando também que estas triplicam a média europeia.

Apesar destes apelos, dos números revelados pelo Conselho da Europa e, em geral, da racionalidade e contenção da lei aprovada pela Assembleia da República por proposta do Governo, alguns venturosos magistrados, invocando inclusive as suas responsabilidades sindicais, decidiram assumir posições públicas que procuraram pôr em causa as razões humanitárias daquela iniciativa legislativa.

A questão não será a da crítica técnica, sempre saudável e requerida, a algumas das soluções preconizadas, mesmo que tais tomadas de posição pareçam revelar algum desconhecimento sobre a história das leis de amnistia anteriormente promulgadas no país.

A questão reside, sim, na insinuação enviesada e politicamente orientada sobre as verdadeiras motivações que estariam na origem de tal proposta e, pior, na total falta de piedade que o pensamento de tais venturosos magistrados obviamente manifesta.

Tem-se assistido – é visível – a uma crescente sedimentação, no seio das magistraturas e de alguns corpos policiais, de uma ideologia puramente securitária que julga poder resolver os problemas sociais e económicos do país através do uso indiscriminado de medidas punitivas cada vez mais rigorosas e exemplares.

Longe vão os tempos em que as associações de magistrados se destacavam entre nós por uma análise crítica de tal visão primária e redutora do papel do direito e da lei.

Na altura, eram essas associações censuradas por setores do poder político pela assunção de uma atitude mais crítica quanto ao uso abusivo de medidas repressivas na contenção das contradições sociais, apesar dos excessos e crimes graves – que também os houve – praticados durante ações voluntaristas e irresponsáveis ocorridas nesse período.

Recordo, a propósito, a atitude exemplar e corajosa que então foi assumida pela direção do SMMP, quando do processo das FP-25 – processo que levou à necessidade de proteger permanentemente alguns dos magistrados nele envolvidos e que eram membros ativos daquele sindicato –, sem que, todavia, a sua linha de rumo na crítica antiautoritária e antissecuritária tivesse sido alterada ou sequer abalada.

Mas esses eram tempos de envolvimento dos magistrados – como cidadãos civicamente empenhados – nos rumos abertos pela democracia.

A ilusória assepsia ideológica desenvolvida, desde então, na vida política e social, no próprio ensino universitário do direito e na escola da magistratura portuguesa alterou, porém, essa abertura original dos magistrados e do seu movimento associativo em relação às ideias mais críticas – e autocríticas – da sua missão e posicionamento institucional na democracia.

Concomitantemente, assistiu-se à explosão mediática do escandaloso fenómeno da corrupção nas sociedades democráticas e ao significativo papel que no seu desvelamento tiveram muitos magistrados em alguns países europeus.

Esses processos puseram em confronto direto magistrados e detentores de cargos políticos, baralhando, em muitos casos, a perceção que uns e outros tinham, ou deviam ter, sobre a função e legitimidade de cada um deles.

Tais fenómenos e processos influíram, indubitavelmente, na formação de uma geração inteira de magistrados, tendo contribuído para um sentimento de autodefesa e para a sedimentação, no seu seio, de um empenhamento profissional preferencialmente tecnicista, rigorosamente funcionalista e, além disso, autocentrado.

Foi esse espírito que ajudou a fixar em muitos magistrados a aspiração mal escondida de um protagonismo redentor do poder judicial na sociedade, em contraponto com os vícios apontados, acrítica e indeterminadamente, ao poder e classe política como um todo.

Por via de tal ideia redentora – e todos sabemos aonde isso pode conduzir – afirmaram-se depois as ideias securitárias que dominam, hoje, setores importantes das magistraturas e influenciam mais gravemente muitos corpos policiais.

Aqui a justificação para certas tomadas de posição que, mesmo não vinculando muitos e muitos magistrados, não deixam de macular genericamente a sua imagem pública.

Reequacionar o que se passou e procurar encontrar caminhos que potenciem de novo a discussão e o espírito crítico e humanista no seio das magistraturas é hoje, mais do que nunca, fundamental.

Se assim não for, não haverá cultura e reformas democráticas que vinguem na justiça, pois todas elas serão olhadas com suspeição e interpretadas por alguns de acordo com os códigos mais retrógrados.