Luís trabalha na construção civil, estando a fazer algumas obras num hospital. Celina e Filipe, ambos professores, explicam como a pandemia lhes tirou a privacidade. Paulo é agente da PSP, integra a Brigada de Investigação de Acidentes de Viação de Alverca, e conta como está a fazer para pôr o trabalho em dia. Susana lamenta que os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica sejam muitas vezes esquecidos.
Luís Ferreira, trabalhador da construção civil
“Estamos sempre a lavar as mãos. Temos de nos proteger”
O mundo abrandou, mas não para todos. Layoff ou teletrabalho são palavras que não constam – nem podiam constar – no dicionário de Luís Ferreira, que todos os dias continua a fazer a sua rotina. É trabalhador na área da construção civil e desenvolve algumas obras num hospital da região de Lisboa. O dia começa bem cedo, para sair de casa às 7h. E é logo quando sai que começa a notar as diferenças: “Já não há tanto trânsito, veem-se muito menos carros”, diz.
A chegada ao hospital e a preparação para dar início ao trabalho sofreram algumas mudanças. “Agora trabalhamos com máscaras e luvas, que vão sendo mudadas várias vezes ao longo do dia”, garante. E também o gel desinfetante passou a ser produto obrigatório para ele e para os colegas: “Usamos várias vezes e estamos sempre a lavar as mãos. É a única maneira que temos para nos tentarmos proteger a nós e aos outros”.
E mesmo durante o dia de trabalho, Luís Ferreira consegue notar várias diferenças. Apesar do trabalho, duro para o corpo, o dia costumava ser “divertido”. Agora, “não tanto”. “As pessoas andam preocupadas em prevenir a sua saúde. E o distanciamento social não permite o convívio de antes. “É normal”.
O novo traje de trabalho obriga ao uso de luvas e máscara mas, por vezes, é necessário usar bata e touca, uma vez que já teve de trabalhar em locais onde estiveram doentes com a covid-19. “É um risco, mas o trabalho não pode parar”.
A parte mais difícil é ao fim do dia, quando Luís volta para casa, onde vive com a mulher e duas filhas. “Não vou para casa com a roupa do trabalho, descalço-me à porta, desinfeto as mãos várias vezes e tomo banho. Espero que seja o suficiente”. Mas, além disso, o que custa mais é o distanciamento da família: “Mesmo vivendo com elas, não há o toque e o carinho de antes. Trabalho fora de casa e por isso tenho de ter esta atenção especial”. “Mesmo assim, continuamos a ver-nos todos os dias, estamos na mesma casa. Há pessoas em piores situações. O afeto é importante, mas tenho a certeza de que, quando isto terminar, saberemos dar-lhe muito mais valor”.
Celina Oliveira e Filipe Malta, professores
“Acabamos por perder a nossa privacidade”
O relógio marca 23h. E Celina Oliveira e Filipe Malta estão ainda à volta dos seus afazeres, entre livros, papéis, telefones e computadores. São ambos professores e é sempre assim desde que começou o confinamento e o ensino à distância. “O nosso lar era o nosso refúgio”, recorda Celina. Mas derrubada a fronteira entre casa e trabalho, também os horários foram caindo, a pouco e pouco, no esquecimento. “Estamos sempre contactáveis, a todo o momento, 24 sobre 24 horas. E acabamos por perder a nossa privacidade”, diz.
Celina Oliveira é professora do ensino básico numa escola pública de Odivelas e tem ocupado (grande) parte do dia a refletir e debater com diretores e colegas que estratégia utilizar neste terceiro período – uma novidade para professores, alunos e famílias. “O mais importante é mantermos a ligação com todos os alunos, incluindo os que estão em situação mais vulnerável”, afirma. A professora de História considera que este “talvez seja, neste momento, o grande desafio que se coloca à escola pública”.
Filipe Malta é professor de piano. A pandemia alterou-lhe os planos, obrigando-o a encontrar soluções para conseguir manter algumas das suas aulas. Mas como ensinar a tocar um instrumento musical à distância? A solução foi recorrer aos meios digitais. Hoje, Filipe acompanha os seus alunos particulares através dos ecrãs, cada um na sua casa, cada um no seu piano. “Decidi experimentar, sem nunca antes o ter feito”, afirma. E o balanço não podia ser mais positivo: “Está a correr muito bem, até melhor do que pensei”.
Afinal, a vida precisa sempre de um pouco de música – uma verdade ainda mais irrefutável em momentos de crise como atravessam atualmente o país e o mundo.
Além do trabalho, pouco ou nenhum tempo sobra. Mas o resto do mundo, porém, não parou de girar. E quando uma filha de 12 anos entra na equação, os desafios multiplicam-se. Celina Oliveira e Filipe Malta – enquanto partilham a secretária e a vida – desempenham o papel de pais e de professores a dobrar.
Paulo Peres, agente da PSP
“Jogamos com a sorte todos os dias”
A segurança de um país não pode ser feita através do teletrabalho e os agentes da PSP veem agora o seu esforço redobrado. Desde o início da pandemia que Paulo Peres, agente da PSP e dirigente sindical, não vê os pais. “A relação próxima que tenho com eles está suspensa e só vejo os meus dois filhos – um de 12 anos e outro de 15 – e a minha mulher, mais ninguém”, conta. Todos os cuidados são poucos, sobretudo “porque nunca se sabe se o vírus não é levado para casa”.
Sempre que pode, Paulo toma banho no serviço para não entrar em casa com a roupa do trabalho. “Nós não somos exceção, não somos diferentes das outras pessoas, e também temos medo”, diz. Faz parte da divisão de Alverca e o facto de fazer turnos rotativos – manhãs, tardes ou noites – é um fator que aumenta a preocupação, tanto dentro do trabalho como fora dele. “Ao contrário de outras instituições, na PSP continua a haver uma rotação dos grupos”. Ou seja, Paulo, de 44 anos, não trabalha sempre com os mesmos colegas. “Se assim fosse, seria mais fácil fazer a prevenção, mas há sempre o fator surpresa, não sabemos se a pessoa com quem vamos trabalhar está ou não infetada”, acrescenta.
Paulo faz parte da Brigada de Investigação de Acidentes de Viação e, desde que os primeiros casos foram confirmados, cada agente tem a responsabilidade de desinfetar o local de trabalho. “Temos uma solução, que mais não é do que água com lixívia, que passamos em todo o lado. Por exemplo, limpo sempre a minha secretária e até as maçanetas das portas são desinfetadas e os carros também”, explicou. Também os kits de proteção são outra das preocupações, já que cada kit tem apenas uma máscara, um par de luvas e uma viseira, que é de uso sem obrigatório. “Se tivermos duas ocorrências no mesmo dia, ficamos sem máscara e luvas”, acrescenta.
A pandemia trouxe uma diminuição dos acidentes nas estradas, por isso, Paulo conta que aproveita agora para adiantar trabalho pendente de processos que tem em mãos relativos a sinistros automóveis. “Mas continuo a trabalhar, nada mudou”.
Susana Graça, técnica de radiologia
“Quero chegar a casa apenas cansada e não exausta”
Seis horas. É esse o tempo que Susana Graça tem de passar sem comer, beber ou ir à casa de banho a partir do momento em que veste a proteção individual para entrar ao serviço num hospital da Grande Lisboa. Susana é técnica de radiologia, “uma das áreas que integram a classe dos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica”. E este é um trabalho que tem um peso importante no combate ao novo coronavírus. “Somos os responsáveis pelos exames de imagem, como as radiografias ou as TAC essenciais para o diagnóstico da covid-19”.
Nas últimas semanas, o trabalho de Susana passou a concentrar-se no diagnóstico dos doentes que vão chegando ao hospital onde trabalha. Fazem turnos de 12 horas durante três dias seguidos, sempre com equipas fixas.
A nova rotina tem trazido desafios acrescidos. “O mais difícil é conciliar a vida pessoal com a profissional, pois tenho duas filhas pequenas que precisam de atenção. E o meu marido tem uma empresa que também precisa de sobreviver a tudo isto”.
Já no trabalho, há todos os dias adversidades a superar. “É muito difícil ter de trabalhar com aquele material de proteção individual tão incómodo”, afirma, lembrando que tem de estar em “alerta constante” para não pôr a segurança de ninguém em risco. “E ao chegar a casa tenho ainda de lidar com o medo de pôr em risco os que mais amo”. A técnica de radiologia está também preocupada com o trabalho entretanto deixado em suspenso. “Depois disto, quando estivermos totalmente exaustos, sabemos que teremos centenas de exames em atraso para dar resposta que se foram acumulando ao longo destes meses”.
Susana, que tem visto nos últimos anos “um desinvestimento total no SNS”, lembra por estes dias o esquecimento a que a sua profissão foi legada. “A minha profissão, por exemplo, continua sem nenhuma carreira ou atualização salarial há mais de 20 anos, e agora pedem-nos que sejamos voluntários nesta guerra”. Depois do sprint, Susana gostava que o reconhecimento fosse outro e que todos percebessem a “importância de um SNS forte e universal”. “Espero que os utentes, depois disto, se tornem mais tolerantes e as agressões aos profissionais de saúde, que eram cada vez mais, diminuam”.
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