Pedro já acusa o cansaço, mas não esconde que sabem bem alguns mimos que têm sido dados aos profissionais de saúde. Sílvio e o pai dizem que é hora de assumir a primeira linha e, se possível, fidelizar alguns clientes. Filipe estava a contar com umas férias na sua terra natal em dezembro e ainda não desistiu do sonho. E Wilker é a cara dos que veem um lado bom em tudo. Até nesta pandemia.
Pedro Freire, Médico
"Quando ultrapassarmos isto vamos estar exaustos"
“É inevitável o cansaço!” Pedro Freire não esconde aquilo por que tem passado nas últimas semanas. Médico nos cuidados intensivos do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, reconhece que tem sido “sobrecarregado” de trabalho, mas nunca desiste de dar sempre o seu melhor, todos os dias. É bombardeado com telefonemas a toda a hora por familiares e amigos de doentes, numa época de restrição de visitas nos hospitais. Mas é o seu trabalho. E de uma coisa tem a certeza: quando tudo isto passar, vai estar exausto. “A maioria das pessoas queixa-se de estar aborrecida em casa, mas, para nós, com uma sobrecarga horária e durante parte da qual temos de usar um equipamento de proteção individual que é desconfortável, esta pandemia não tem nada de aborrecido. “E quando ultrapassarmos isto vamos estar exaustos, com listas de espera imensas, todos com dias de férias por gozar que dificilmente nos serão autorizadas e com uma população que é compreensiva, mas tendencialmente reivindicativa”, atirou.
Como a doença covid-19 ainda não é assim tão conhecida, Pedro procura chegar à cura do doente da melhor forma possível, mas nem sempre é fácil. E a forma como os portugueses lidam com a morte não ajuda, diz. “Não conseguimos pensar nela como um processo natural e muitas são as vezes em que nós, os próprios médicos, temos dificuldade em aceitar o curso natural da doença, abstendo-nos de intervir, e investimos tudo o que podemos, muitas vezes levando a situação a um limiar de encarniçamento terapêutico”, disse.
O surto tem posto os profissionais de saúde à prova, porque “é nos extremos que as pessoas se revelam”. E no meio do cansaço, aqueles miminhos de não ter de esperar na fila do supermercado, dos sumos, chocolates, gelados e até de produtos de higiene “para podermos tomar duche antes de sair do hospital”, sabem a uma dádiva de um deus chamado humanidade. Não vê os pais desde que o novo coronavírus chegou a Portugal, mas acredita que o futuro será melhor.
Sílvio Antunes, Talhante
"Isto é uma roda dentada, precisamos uns dos outros"
Ao lado do pai, Sílvio, de 40 anos, ajuda a despachar os últimos pedidos do fim de semana da Páscoa no talho da família, numa praceta do Monte Abraão. É assim há 25 anos quando, ainda adolescente, abraçou o negócio de família. “Que remédio”, sorri. Os últimos dias têm sido uma “loucura” de trabalho, a adaptarem-se às novas rotinas, às regras de segurança como não tocar no balcão e só receberem dois clientes de cada vez, mas também para responderem às diferentes solicitações. “Temos tido mais trabalho sobretudo em termos de logística mas, cuidados de higiene e desinfetar, tudo isso já fazíamos. Temos de evitar mais o contacto com o cliente e isso exige mais foco; de resto, é o habitual. Mantemos os horários, só saímos um pouco mais cedo também para descansarmos um bocado”.
Entre cabrito e borrego venderam-se 50 cabeças nos últimos dias, até mais do que em anos anteriores. “As pessoas não foram à terra e isso nota-se. Mas também compraram partes mais pequenas, porque são menos pessoas em casa”. As portas mantêm-se abertas porque Sílvio e o pai sentem também que há clientes a vir pela primeira vez e a querer provar a carne do talho – uma oportunidade a agarrar porque, ao mesmo tempo, há a quebra da restauração e dos colégios. “Queremos tentar fidelizar o cliente ao máximo. As pessoas veem que há muita gente na fila do supermercado e acabam por vir cá, têm um tratamento mais personalizado, são um bocado mais mimadas”. Apesar dos receios, a dedicação fala mais alto: “Receios, todos temos, mas alguém tem de estar nesta linha, como há os médicos e o pessoal da saúde. Isto é uma roda dentada, todos precisamos uns dos outros. Alguns trabalhos podem parar mas, mesmo assim, num curto espaço de tempo”. O pai, Jorge, 62 anos, também não pensou em arrumar as facas, mas todos os dias regressa a casa com os cuidados de deixar sapatos à porta e lavar a roupa para evitar expor a mulher, que é asmática, ao vírus. A ajudá-los está António, “o nosso braço-direito”, não que haja muito mais trabalho mas porque, em termos de pandemia, continua a importar repartir.
Filipe Viegas, Porteiro
"Uso luvas, está a ver? Sem elas não saio daqui"
“É assim a vida”. Filipe Oliveira Viegas resume desta forma – com a simplicidade de quatro palavras e um encolher de ombros – a imensa nuvem negra que se abateu sobre o mundo. O são-tomense é o guardião de quem entra e sai de uma urbanização em Lisboa e no seu gabinete, encastoado num piso intermédio a caminho do subsolo, a sua vida como porteiro do prédio pouco ou nada se alterou.
“Eu estou sempre aqui isolado, o que agora, com isto do coronavírus, até é bom”. Protegido por janelas de vidro, os olhos de Filipe são as câmaras que o rodeiam. Dentro e fora do edifício. Apenas uma pequena e antiquada televisão lhe serve de companhia para um turno de 12 horas – das 8h às 20h ou das 20h às 08h. É assim que sabe as notícias do país e do mundo. E acompanha, atento, as notícias sobre a doença.
Enquanto isso, as suas rotinas mantêm-se. Assim como a toada tranquila de gestos e palavras. “Nada mudou, mas agora há menos gente a entrar e a sair dos prédios. E muito menos carros a circular pelas garagens”, conta. As funções de porteiro e segurança são solicitadas menos vezes, já que as portas permanecem quase sempre fechadas. “Temos de ter paciência”, diz, num jeito conformado – não resta muito mais.
E quando a madrugada é de recolha do lixo, cabe-lhe trazer os caixotes da rua. Cumpre a função como de costume, mas com novas cautelas. “Uso estas luvas, está a ver?”, mostra, apontando para um canto do gabinete. “Sem elas, não faço nada nem saio daqui”, reforça.
Wilker, Entregador da Glovo
"Há males que vêm por bem"
Mas se a pandemia não veio alterar significativamente o seu dia-a-dia de trabalho, o mesmo já não se poderá dizer dos seus planos de férias. Filipe tinha tudo pensado para regressar este ano à “sua” São Tomé e Príncipe. “Ia regressar em dezembro. Já tinha tudo preparado”, diz, com um ar de indisfarçável desalento. E agora? “Ainda está dentro do prazo, não?”, volta a perguntar. Filipe espera que sim – como todos nós.
Trabalha de domingo a domingo. Wilker não tem folgas nem feriados e só assim é que consegue pagar todas as despesas – com os cerca de 200 euros que recebe por semana. Por agora, entrega comida pela Glovo, mas quando o vírus deixar de ser uma ameaça quer procurar trabalho “noutra coisa, um emprego melhor”. Wilker chegou a Portugal há três meses – veio do Ceará, Brasil –, pediu os papéis para a legalização no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mas as burocracias e tempos de espera elevados atiraram-no – a ele e ao cunhado – para as entregas ao domicílio. “Sem os papéis, não consegui encontrar um ‘emprego formal’, então tive de vir para aqui, porque é o único sítio onde aceitam sem documentos, só com o passaporte. Trabalho 12 horas por dia, mas não posso deixar de trabalhar”, explicou Wilker, de 30 anos.
Quando começou a trabalhar nas entregas ao domicílio, a nuvem do novo coronavírus já pairava sobre Portugal. Hoje faz mais entregas e tem outros cuidados – não leva à porta do apartamento, por exemplo. Como grande parte das pessoas está em casa, os pedidos para entregar almoço ou jantar continuam e quem trabalha nas entregas ao domicílio não viu o seu posto de trabalho comprometido.
No meio da pandemia, conta Wilker, “há males que vêm por bem”: por ter submetido o pedido de legalização em Portugal antes do início da crise sanitária, viu o seu processo acelerado e, neste momento, já tem número de Segurança Social e todos os documentos para que possa encontrar outro trabalho com contrato. “Se não fosse isto, tinha de estar mais uns seis meses à espera”, acrescentou.
Apesar das burocracias e das dificuldades em encontrar um trabalho melhor, Wilker diz preferir “sem dúvida” estar em Portugal, pela “qualidade de vida e segurança”. “O Brasil é muito perigoso. Lá, nunca ia passar pela minha cabeça trabalhar nisto, nem andar com o telemóvel na mão”, explicou, acrescentando: “Aqui sabemos que há um lado bonito e um lado menos bonito na cidade, mas mesmo nesse lado menos bonito, a gente sabe que pode estar”.
{relacionados}