O sofisma de um Estado decente


Não será antes uma estratégia meramente oportunista por parte do Governo e da Sra. Ministra da Justiça em aproveitar o momento excepcional e irrepetível (assim todos nós esperamos) desta pandemia para resolução de um problema de sobrelotação escondido (não admitido nem confirmado) das cadeias em Portugal?


Sem recorrer a crises agudas de histerismo com que alguns gostam de tratar estes assuntos mais complexos – promovendo na opinião pública a confusão e a discórdia, em vez da discussão séria e esclarecedora -, creio que a ideia avançada pela Ministra da Justiça no início deste mês, relativamente à possibilidade objectiva de se retirarem reclusos dos estabelecimentos prisionais sob o pretexto de um eventual surto de contágio do novo coronavírus, é amplamente duvidosa e, porquanto, altamente discutível.

Disse Francisca Van Dunem que "um Estado decente não abandona os seus cidadãos, mesmo os presos".

Em sentido amplo, esta é uma afirmação com a qual ninguém com neurónios pode deixar de concordar…

Para ilustrar melhor a sua pretensão, referiu alguns dados sociológicos do universo dos estabelecimentos prisionais portugueses. Designadamente e passo a citar: "o envelhecimento da população prisional, a elevada prevalência de problemas de saúde associados ao envelhecimento do edificado prisional e à grande concentração de reclusos, em alguns estabelecimentos tornam o ambiente propício a uma catástrofe sanitária em caso de introdução do vírus nas cadeias".

Acrescem ainda – segundo a responsável máxima pela política de Justiça – duas considerações internacionais como fundamentos a ter em consideração na consciente tomada de decisão governativa sobre a matéria em causa.

Por um lado, um documento recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre "os riscos da covid-19 nas prisões que sugere uma estratégia de abordagem com três passos essenciais: prevenir a introdução do vírus nos estabelecimentos prisionais, estancar as cadeias de contágio e evitar a propagação na comunidade".

Por outro lado, o facto das Nações Unidas (ONU) – através da alta-comissária para os Direitos Humanos – ter vindo "exortar os Estados a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar reclusos particularmente vulneráveis à covid-19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco".

Ora, a lei entretanto aprovada prevê o seguinte:

1. Um perdão parcial de penas de prisão.

2. Um regime especial de indulto das penas.

3. Um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados.

4. A antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.

De referir que os mecanismos agora aprovados não se aplicam a nenhum recluso condenado por crimes violentos (homicídio, violência doméstica, entre outros), crimes de funcionários (políticos, membros das forças de segurança, entre outros) e que incluem as práticas criminosas da corrupção, da participação económica em negócio, entre outras. Tal como, estão fora do âmbito de aplicabilidade desta nova lei os reclusos condenados por crimes de tráfico de droga.

Ou se preferirmos, pela moldura penal, estão fora destas medidas excepcionais de "combate à propagação do vírus nos estabelecimentos prisionais" os condenados a cumprir penas de prisão superiores a 2 anos.

Posto isto, cruzando os motivos iniciais e seus princípios com os quesitos concretos e objectivos pretendidos por esta lei e seus respectivos destinatários ou beneficiários-protegidos, tenho muitas dúvidas quanto à real razão para isto estar em cima da mesa neste exacto momento…

Não será antes uma estratégia meramente oportunista por parte do Governo e da Sra. Ministra da Justiça em aproveitar o momento excepcional e irrepetível (assim todos nós esperamos) desta pandemia para resolução de um problema de sobrelotação escondido (não admitido nem confirmado) das cadeias em Portugal?

Não será isso e a poupança que isso acarreta aos cofres do Estado em refeições e outras despesas com os cerca de dois mil reclusos abrangidos por esta iniciativa política do Ministério da Justiça? É que parece indesmentível que será um brilharete estatístico a apresentar ao país daqui a uns tempos…

E já agora, são estes dois mil os reclusos-target de um eventual surto por contágio do coronavírus por que razão científica?

Então se o problema é um eminente contágio indoor com eventual propagação virulenta, não seria mais lógico "proteger" os reclusos de idade superior a 60 anos e /ou doentes crónicos de outras patologias, de resto, em linha com a normal tabela dos grupos de risco e, nesse caso, independentemente do tipo de crime pelo qual está a cumprir pena?

Não é isso mesmo o que recomenda a OMS e a ONU?

Sinto-me confuso!

Sinceramente, tudo isto afigura-se-me demasiado opaco. Sendo a matéria em causa de enorme sensibilidade social, não se exigiria que fosse tratada de forma mais transparente?

Obviamente que sim. Translúcida e cristalina!

Não creio, pois, que uma espécie de princípio "in dubio pro reo" neste caso associado ao coronavírus possa ser aplicado tão levianamente a um conjunto de reclusos concretos e determinados espalhados por todos os estabelecimentos prisionais portugueses, não por serem pessoas de grupos de risco de contracção da covid-19, mas sim, por serem reclusos a cumprir penas de prisão por crimes menores…

Onde está então, nesta medida, o interesse real de protecção dos cidadãos presos relativamente à doença provocada pelo coronavírus que faz de nós um Estado decente?

De onde se pode retirar estarmos a defender o primado da pessoa humana enquanto Estado de Direito que somos, no estrito cumprimento dos princípios basilares da Declaração Universal dos Direitos do Homem plasmados na Constituição da República Portuguesa, quando dizemos que apenas alguns dos reclusos abrangidos por esta lei – verdadeiramente pertencentes a grupos de risco (idade e morbilidades) – podem sair em liberdade mais ou menos livre ou condicionada, enquanto outros, em igualdade dessas mesmas circunstâncias, não podem sair por estarem a cumprir penas de prisão de moldura penal superior por via do tipo de crime praticado?

Afinal estamos aqui a defender o quê e porquê?

Se era, de facto, a epidemia a razão única subjacente a esta decisão do Executivo, não seria mais lógico e ponderado promover alterações e trocas de reclusos nos estabelecimentos prisionais, por forma, a isolar o mais possível os grupos de risco?

Como está bem de ver, não é isto, de todo, uma decisão minimamente coerente com o preâmbulo legal, nem tão pouco consentânea com o processo de intenção prévia e publicamente divulgado.

Não. Não é isto um Estado decente. Isto é um sofisma. Um silogismo sofístico é o que isto é!

Jurista.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.          

O sofisma de um Estado decente


Não será antes uma estratégia meramente oportunista por parte do Governo e da Sra. Ministra da Justiça em aproveitar o momento excepcional e irrepetível (assim todos nós esperamos) desta pandemia para resolução de um problema de sobrelotação escondido (não admitido nem confirmado) das cadeias em Portugal?


Sem recorrer a crises agudas de histerismo com que alguns gostam de tratar estes assuntos mais complexos – promovendo na opinião pública a confusão e a discórdia, em vez da discussão séria e esclarecedora -, creio que a ideia avançada pela Ministra da Justiça no início deste mês, relativamente à possibilidade objectiva de se retirarem reclusos dos estabelecimentos prisionais sob o pretexto de um eventual surto de contágio do novo coronavírus, é amplamente duvidosa e, porquanto, altamente discutível.

Disse Francisca Van Dunem que "um Estado decente não abandona os seus cidadãos, mesmo os presos".

Em sentido amplo, esta é uma afirmação com a qual ninguém com neurónios pode deixar de concordar…

Para ilustrar melhor a sua pretensão, referiu alguns dados sociológicos do universo dos estabelecimentos prisionais portugueses. Designadamente e passo a citar: "o envelhecimento da população prisional, a elevada prevalência de problemas de saúde associados ao envelhecimento do edificado prisional e à grande concentração de reclusos, em alguns estabelecimentos tornam o ambiente propício a uma catástrofe sanitária em caso de introdução do vírus nas cadeias".

Acrescem ainda – segundo a responsável máxima pela política de Justiça – duas considerações internacionais como fundamentos a ter em consideração na consciente tomada de decisão governativa sobre a matéria em causa.

Por um lado, um documento recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre "os riscos da covid-19 nas prisões que sugere uma estratégia de abordagem com três passos essenciais: prevenir a introdução do vírus nos estabelecimentos prisionais, estancar as cadeias de contágio e evitar a propagação na comunidade".

Por outro lado, o facto das Nações Unidas (ONU) – através da alta-comissária para os Direitos Humanos – ter vindo "exortar os Estados a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar reclusos particularmente vulneráveis à covid-19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco".

Ora, a lei entretanto aprovada prevê o seguinte:

1. Um perdão parcial de penas de prisão.

2. Um regime especial de indulto das penas.

3. Um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados.

4. A antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.

De referir que os mecanismos agora aprovados não se aplicam a nenhum recluso condenado por crimes violentos (homicídio, violência doméstica, entre outros), crimes de funcionários (políticos, membros das forças de segurança, entre outros) e que incluem as práticas criminosas da corrupção, da participação económica em negócio, entre outras. Tal como, estão fora do âmbito de aplicabilidade desta nova lei os reclusos condenados por crimes de tráfico de droga.

Ou se preferirmos, pela moldura penal, estão fora destas medidas excepcionais de "combate à propagação do vírus nos estabelecimentos prisionais" os condenados a cumprir penas de prisão superiores a 2 anos.

Posto isto, cruzando os motivos iniciais e seus princípios com os quesitos concretos e objectivos pretendidos por esta lei e seus respectivos destinatários ou beneficiários-protegidos, tenho muitas dúvidas quanto à real razão para isto estar em cima da mesa neste exacto momento…

Não será antes uma estratégia meramente oportunista por parte do Governo e da Sra. Ministra da Justiça em aproveitar o momento excepcional e irrepetível (assim todos nós esperamos) desta pandemia para resolução de um problema de sobrelotação escondido (não admitido nem confirmado) das cadeias em Portugal?

Não será isso e a poupança que isso acarreta aos cofres do Estado em refeições e outras despesas com os cerca de dois mil reclusos abrangidos por esta iniciativa política do Ministério da Justiça? É que parece indesmentível que será um brilharete estatístico a apresentar ao país daqui a uns tempos…

E já agora, são estes dois mil os reclusos-target de um eventual surto por contágio do coronavírus por que razão científica?

Então se o problema é um eminente contágio indoor com eventual propagação virulenta, não seria mais lógico "proteger" os reclusos de idade superior a 60 anos e /ou doentes crónicos de outras patologias, de resto, em linha com a normal tabela dos grupos de risco e, nesse caso, independentemente do tipo de crime pelo qual está a cumprir pena?

Não é isso mesmo o que recomenda a OMS e a ONU?

Sinto-me confuso!

Sinceramente, tudo isto afigura-se-me demasiado opaco. Sendo a matéria em causa de enorme sensibilidade social, não se exigiria que fosse tratada de forma mais transparente?

Obviamente que sim. Translúcida e cristalina!

Não creio, pois, que uma espécie de princípio "in dubio pro reo" neste caso associado ao coronavírus possa ser aplicado tão levianamente a um conjunto de reclusos concretos e determinados espalhados por todos os estabelecimentos prisionais portugueses, não por serem pessoas de grupos de risco de contracção da covid-19, mas sim, por serem reclusos a cumprir penas de prisão por crimes menores…

Onde está então, nesta medida, o interesse real de protecção dos cidadãos presos relativamente à doença provocada pelo coronavírus que faz de nós um Estado decente?

De onde se pode retirar estarmos a defender o primado da pessoa humana enquanto Estado de Direito que somos, no estrito cumprimento dos princípios basilares da Declaração Universal dos Direitos do Homem plasmados na Constituição da República Portuguesa, quando dizemos que apenas alguns dos reclusos abrangidos por esta lei – verdadeiramente pertencentes a grupos de risco (idade e morbilidades) – podem sair em liberdade mais ou menos livre ou condicionada, enquanto outros, em igualdade dessas mesmas circunstâncias, não podem sair por estarem a cumprir penas de prisão de moldura penal superior por via do tipo de crime praticado?

Afinal estamos aqui a defender o quê e porquê?

Se era, de facto, a epidemia a razão única subjacente a esta decisão do Executivo, não seria mais lógico e ponderado promover alterações e trocas de reclusos nos estabelecimentos prisionais, por forma, a isolar o mais possível os grupos de risco?

Como está bem de ver, não é isto, de todo, uma decisão minimamente coerente com o preâmbulo legal, nem tão pouco consentânea com o processo de intenção prévia e publicamente divulgado.

Não. Não é isto um Estado decente. Isto é um sofisma. Um silogismo sofístico é o que isto é!

Jurista.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.