Há trabalhos que não podem ser feitos a partir de casa. As bancadas parlamentares não podem ser limpas atrás de uma secretária ou de um computador. As mesas da redação de um jornal não podem ser desinfetadas através de programas em rede. E os hospitais não podem adiar a desinfeção nem um minuto.
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As empregas de limpeza estão na linha da frente – uma linha que para muitos passa despercebida e se torna invisível. Num momento em que todo o cuidado é pouco, estas mulheres têm nas mãos a responsabilidade de diminuir os riscos de contágio. Não param de trabalhar e continuam a acordar de madrugada para limpar, desinfetar e garantir que aquilo que ficou sujo não vai ser um foco de disseminação da doença. Seja no Parlamento, nos hospitais, nas farmácias, nas empresas que continuam em atividade, ou até nas redações dos jornais, elas estão lá, de vassoura, esfregona e desinfetante na mão. E não baixam os braços.
Às 08h37 da manhã, Amélia da Cruz pega numa caneta e escreve a hora e o nome na folha de registos pendurada à porta da casa de banho. Deixa dois rolos de papel higiénico, e segue para a próxima. Conduz um carrinho, mas sempre de luvas nas mãos. Esta quarta-feira, foi dia de plenário na Assembleia na República, o que para os deputados significa discussão de medidas e para as mulheres que limpam quer dizer que têm de ir todas trabalhar.
“O horário é repartido, uma semana vêm umas pessoas e outra semana vêm outras. A semana passada eu estive a trabalhar, mas quando há plenário temos de vir todas”, explica. Às sete da manhã, depois de ter saído de Caneças, onde vive, e de ter viajado na Rodoviária de Lisboa, no Metro e na Carris, Amélia junta-se às cerca de 50 empregadas responsáveis por limpar o Parlamento que, com o avançar da manhã, se vão misturando com os políticos. Conhecem toda a gente e é rara a pessoa que não diz bom dia. Amélia fica com as casas de banho e Feliciana Afonso limpa o chão do refeitório. “Agora não há quase ninguém, antes andava sempre gente para trás e para frente. Está tudo muito diferente”, explica Feliciana, que tem saudades dos dias em que os deputados entravam e saíam sem restrições. Mas acrescenta: “Ao menos o chão está sempre limpinho”.
A pandemia trouxe outra realidade a estas mulheres. As semanas já não são iguais e os cuidados no trabalho têm de ser redobrados. “Fico mais cansada se não vier trabalhar todos os dias”, diz Amélia, acrescentando que agora é impensável não estar sempre a lavar as mãos.
Hora de ponta nas paragens
Para estarem ali às sete da manhã, estas duas empregadas acordaram, pelo menos, duas horas mais cedo. Entre autocarros e metro, cruzaram-se com dezenas de mulheres que se levantaram da cama com o mesmo propósito – limpar. Os autocarros têm agora menos gente, mas continuam cheios e a distância de segurança que se pede neste momento dificilmente é mantida.
Na Pontinha, as múltiplas paragens são um ponto de transição, em que as mulheres passam de uns autocarros para os outros. E há mais gente à espera de transporte entre as quatro e as cinco da manhã do que durante a manhã – como se fosse uma hora de ponta ao abrigo da noite.
“Agora há menos gente, há muitas mulheres que estão em casa com os filhos, porque não têm escola, e outras estão em casa porque as empresas já não estão a trabalhar, então não há nada para limpar, ou não trabalham todos os dias”, explica Madalena Soeiro. Aos 78 anos, já perdeu a conta ao tempo que trabalha nas limpezas. Mesmo assim, tenta sempre fazer as contas: “Ora, a minha filha tem 45 anos e nessa altura eu já estava nas limpezas há uns aninhos”. A idade para pedir a reforma há muito que foi atingida, mas “o dinheiro faz sempre falta”. Madalena divide o tempo entre a limpeza dos escritórios do Porto de Lisboa, em Alcântara, e uma farmácia – nos escritórios continua tudo igual e na farmácia, com a venda de medicamentos apenas à porta, o trabalho até ficou facilitado nesta altura.
Nas mãos, Madalena tem umas luvas calçadas, na mala tem um frasco de desinfetante que a filha lhe comprou e na cara tem uma gola de tecido. “Tenho uma máscara, mas aquilo faz muito calor e embacia os óculos, não vejo nada”, justifica. No entanto, agora raramente se senta quando vai no autocarro e, como continua a trabalhar, a preocupação é o marido que está em casa. “Ele tem a mania das doenças, no outro dia até ligou à filha a dizer que estava a ter um ataque cardíaco, mas não estava nada. Mas tenho medo de levar alguma coisa para casa, claro, nunca se sabe”.
A mulher de 78 anos apanha o autocarro em direção a Alcântara e, imediatamente, o lugar onde estava sentada na paragem é ocupado por outra empregada de limpeza – 53 anos mais nova. Ana Isabel tem apenas um quarto de século de vida e é a prova de que os estereótipos servem para ser quebrados. Há um ano, quando o i fez uma reportagem sobre a vida das empregadas da limpeza, uma delas explicou que ainda existe muito preconceito relativamente às mulheres que limpam aquilo que outros sujam. Ana Isabel divide o seu tempo entre as limpezas, que começa às seis da manhã na redação de um jornal, e o mestrado em Estatística que agora frequenta através de vídeo aulas. Precisava de um rendimento extra e trabalha quatro horas por dia, pelo menos até encontrar um lugar dentro da sua área.
Hoje, além do mestrado e do trabalho, as preocupações viram-se para o que está a acontecer. Não podendo trabalhar a partir de casa, Ana Isabel admite que todos os cuidados são poucos. “Antes, não usávamos luvas, nem máscara no trabalho e agora temos de usar. E desinfetante também. É obrigatório. Depois, quando chego a casa, tiro logo a roupa, desinfeto as mãos e tomo banho”, explica. Além disso, a jovem decidiu mudar a rota de autocarro que antes fazia para conseguir um transporte menos lotado: “As pessoas também não têm muita opção. Por exemplo, o 726 é o primeiro a passar, então vai tudo nesse autocarro. Não tem como manter a distância lá dentro. Eu deixei de apanhar esse e agora apanho o 768 que passa mais tarde, mas tem menos pessoas”.
As mulheres na linha da frente da saúde
Médicos, enfermeiros e auxiliares dão tudo o que podem nesta altura e já se perderam as vezes que o trabalho se multiplicou. Mas alguém tem de limpar os hospitais e garantir que estes espaços não são mais um foco de infeção. As mulheres das limpezas dos hospitais vestem-se como qualquer outro profissional de saúde na hora de limpar os quartos. “Fato, luvas, máscara, óculos e proteção de botas” é o que usa, todos os dias, Paula Pires, trabalhadora no Hospital de Santa Maria, na hora de limpar os quartos. O serviço onde trabalha requer muitos cuidados, já que é onde estão internadas pessoas com problemas respiratórios. E agora tudo é diferente: “Temos de pensar em nós e temos de pensar nos doentes, temos de fazer uma limpeza muito diferente e temos de nos vestir de uma maneira muito diferente”, explica.
Nos hospitais, até o simples ato de tirar um saco do lixo do quarto dos doentes mudou desde que foi confirmado o primeiro caso de infeção por covid-19 em Portugal. Paula Pires, que trabalha no Hospital de Santa Maria há 15 anos, repete este processo todos os dias e até já o ensina às novas funcionárias que estão agora a entrar nos serviços hospitalares, já que o número de empregadas de limpeza nos hospitais aumentou no último mês. Quando entra no quarto, já vestida com o fato “que é muito, muito quente”, uma das funcionárias fica do lado de fora da porta. Paula fecha o saco do lixo, tira-o e bate à porta para que outra colega receba o saco. Esse mesmo saco é colocado dentro de outro, que é também fechado e colocado no contentor. Depois de limpar, Paula tira tudo o que vestiu para entrar no quarto – que é colocado num saco branco para deitar fora –, deixando apenas a máscara para proteger a cara. Sai e vai logo desinfetar o contentor onde foi colocado o saco do lixo para que depois seja recolhido.
E o processo de recolha do lixo é apenas um dos exemplos daquilo que mudou nos últimos tempos. Os detergentes utilizados para limpar também são agora diferentes e é preciso mais atenção na hora de os usar. As funcionárias garantem que nunca lhes faltou material de limpeza, ou de proteção e, sempre que pedem, os responsáveis encarregam-se de fornecer o que é preciso.
“Estamos mais preocupadas e mais nervosas quando vamos trabalhar. Por exemplo, saí do meu serviço e não havia ninguém infetado, mas amanhã quando chegar não sei se já lá tenho alguém”, explica, acrescentando que nos últimos tempos deixou de estar com pessoas fora do trabalho pelo medo de transmitir o vírus, ou de levar o vírus para o hospital. “Já não vejo os meus netos desde que isto começou e às vezes as videochamadas que fazemos ainda me deixam pior, porque fico com mais saudades”. Mas “há males necessários”, diz.
Hoje, o Hospital de Santa Maria não é o local onde entram e saem centenas de pessoas 24 horas por dia. Paula Pires diz que o hospital está mais triste, os doentes não têm visitas, há apenas uma porta para entrar e outra para sair e a brincadeira habitual de um dia de trabalho deu lugar ao medo, mas também à esperança de que tudo vai melhorar e ao sentimento de que estão a fazer o melhor pelos outros. “Já não há cafés e se não levarmos comida de casa, também não há onde comer”, conta.
Mas há um aspeto que, para Paula, vai melhorar no futuro e esta pandemia está a dar também uma lição: “Acho que quando isto tudo acabar, vamos passar a ter mais cuidado, como usar sempre, sempre a máscara, porque é um hábito e tanto nós, como médicos, como enfermeiros, estamos a aprender muito com isto”.