Que carimbos no passaporte das viagens interiores vais levar dos dias da Peste?

Que carimbos no passaporte das viagens interiores vais levar dos dias da Peste?


Não faltam listas de coisas para fazer agora que estamos obrigados ao confinamento. Mas pior que o receio do vírus, parece ser a sanha contra o tédio, o desejo de degolar e esfolar o tempo dê por onde der. E há todo um arsenal à disposição para esse fim. Até no que toca a livros,…


É preciso resguardar-se nalgum tipo de fé. Aquecer mesmo as sobras miseráveis, até disso retirar uma lição. Algum fascínio. “Refiro-me às virtudes da imaginação. Não se pode exigir mais nada” (Herberto Helder). Ou mesmo esse espinho em torno do qual passamos estes dias, considerando-o, deixando-nos rebentar por ele. Estávamos inchados de uma existência em si mesmo desastrada, balofa, e nada como ver-se o próprio universo calafetado. Entretanto, os relatos da peste que as notícias nos trazem, para lá do desespero, da ideia de que vale a pena o esforço de viver, “não importa como, pois a morte está no limite e será preciso morrer”, nem isso apaga a suspeita de que há muito o Ocidente não presta, e agora, é provável que perca de vez a sua sobranceria. Nem que se espreite alguma destas cidades abandonadas, neste intervalo que nos diz tanto sobre o erro e a mentira que temos vivido juntos, o que fica claro também é que estas cidades “deixaram mesmo de ser monstros, e são apenas magma”. E é preciso fugir. Estou a citar livremente uma carta de Armel Guerne a Cioran. E agora isto remete-nos para a sugestão deste num dos seus silogismos da amargura (livro editado entre nós pela Letra Livre, em 2009): “Obrigue-se as pessoas a ficarem estendidas durante dias e dias: os colchões conseguiriam o que nem as guerras nem os slogans ousaram sonhar. Pois as manobras do Tédio superam em eficácia as das armas e as das ideologias.” Esta frase remete-nos, por sua vez, para a célebre sentença de Pascal, quando nos dizia que toda a infelicidade dos homens resulta da nossa incapacidade de ficarmos quietos no nosso quarto. Só que agora, parece que ficámos sem escolha. E se há muitas distracções, hoje, nalgum momento iremos sentir as coisas desmoronar-se. O tempo a ficar descontrolado, do mesmo modo que o leite azeda. Agora, já estou a citar Ray Bradbury, e o esplendor lúgubre das páginas do romance “A Morte é um Acto Solitário” (Cavalo de Ferro, 2019). Este é o tempo da parede. “Isto é, a parede de um pequeno quarto onde o estremecimento dos grandes eléctricos vermelhos se faz sentir como um pesadelo, fazendo com que se revolvam nas nossas camas de ferro na cave (…) está ali aquela parede perto da vossa cama para ser lida com os vossos olhos aquosos, ou para ser tocada sem nunca o ser, já que está demasiado longe e é demasiado profundo e demasiado vazia”. A certas horas, poderemos encontrar a radiografia do velho que um dia veremos impressa na cama vazia, ou poderemos dar por nós próprios, olhando-nos de fora, deitados, sentindo dificuldade de respirar esse ar que, como nós mesmos, talvez não possa acreditar que aquilo seja uma criatura viva, “mas antes um fóssil perturbado pelo desenrolar da eternidade”. Nesta hora, a escolha é entre a parede e alguns livros, e só então nos daremos conta de como estes fazem já parte de outra época. É isso o que nos diz Guerne na já referida carta. “Não se terão tornado os livros uma coisa de outra época, simplesmente, porque a nossa mudou, porque o nosso tempo é outro, doravante, diferente dos tempos que o precederam e anunciaram temerosamente, há cinquenta anos? Um dia de vinte e quatro horas faz hoje muito mais passado do que vinte anos do século XIX. O absurdo despenha-se muito mais do que qualquer outra coisa, o erro ou a mentira, por exemplo – e por aí julgo descobrir que o espírito reina, mais do que nunca, onde não subsiste nenhum lugar para nenhuma soberania.” Esta pandemia, o vírus que nos dizem que nem vivo está, força uma paragem, uma desaceleração, e é a consciência que vem com ela que nos parece algo de abrupto, indelicado, irrespirável. Obrigando-nos também a uma viagem em busca da própria sensação do tempo, porque é a sua perda que configura, hoje, essa forma de exílio a que nos condena um mundo ultra-acelerado. “Devido a se elevarem à superfície, de se apertarem, de se acotovelarem, as aparências fizeram da realidade uma película tão fina, tão delicada e separada de tudo, que o hálito de deus a atravessa sem sequer se dar conta, e toda a verdadeira voz passa de lado a lado sem encontrar lugar que ressoe”, adianta Armel Guerne. O vírus interpõe-se, assim, como uma pausa para se ter uma perspectiva antes de sermos engolfados de vez. Aqui estamos, entre quatro paredes, rodeando o espinho, e não é difícil pressentir como em breve “as trombetas do julgamento irão arrastá-las (às aparências) como uma bolha que rebenta”. Para acedermos ao nosso quarto, à leitura da nossa parede, ainda é preciso rebentar esta bolha. Se as melhores coisas sobre a liberdade têm sido escritas no cárcere, é possível que o confinamento traga em si mesmo uma série de descobertas quase arqueológicas. E depois de atravessarmos as aparências, rompendo com elas, poderemos aceder a esse lugar de desafio, de provocação em que o pensamento se faz valer do embalo do humor, em que até os aspectos incómodos, por vezes desoladores, da quarentena, irão oferecer-nos motivos para desembainhar uma espada e desafiar moinhos, chamar para um duelo cada um dos nossos constrangimentos. Há precedentes nisto. Vem logo à cabeça um livro como “Viagem à volta do meu quarto”, de Xavier de Maistre (Tinta-da-China, 2015). Este sagaz divertimento literário, maravilhosamente desassombrado, nasceu de uma penalidade que foi imposta ao seu autor, em 1794. Este militar de carreira, que nem se levava a sério como escritor, dedicando-se sobretudo à pintura, deu por si em prisão domiciliária, porque a sua inclinação zombeteira o levou a um duelo. É, assim, que dá por si trancafiado num quarto em Turim, dispondo apesar de tudo de algumas mordomias – desde logo um afabilíssimo criado de quarto, o Sr. Joannetti –, e da companhia da sua fiel cadela, Rosine. Não sendo estranho à enfatuação dos viajantes, De Maistre decide-se a mungir as contrariedades da sua situação levando ao limite a ideia de que todas as viagens são viagens interiores, exílios íntimos. Assim, trata de fazer do quarto um país imaginário, revelando-se um ardiloso estratega moral, impondo a cada detalhe a consistência de um grão de sal, convidando o leitor a partilhar do seu sortilégio e a espantar-se com a infinidade de aberturas ao dispor de uma existência confinada. Este livro vive dessas proezas do espírito, desse modo de se balançar no vazio, ficando claro que não está ao alcance de qualquer este modo de calibrar com tanta minúcia um labirinto fantasista, um enredo sumptuosamente escapista. O instrutivo e hábil prefácio à edição portuguesa, assinado por Pedro Mexia, sublinha que, estando retido contra a sua vontade, De Maistre insiste que fazia já tenção de realizar esta experiência, “um interlúdio monacal numa vida atribulada”. Ou seja, a detenção funciona como um passaporte que tranca as fronteiras, faz da viagem uma forma de perder países, uma bênção contra as intrigas sórdidas com que o mal nos vai seduzindo. Chega a protegê-lo da coquetterie das amantes, todos esses enredos que se nos chegam com uma graça aromática antes de nos encarcerarem num perfume enjoativo que acaba por afogar todos os outros sentidos. Gingando entre passadas que ressoam de forma mítica e arremedos burlescos, o registo de que se vale para relatar esta viagem (que é seguida de um outro texto, “Expedição Nocturna à Volta do Meu Quarto”, mais introspectivo, menos alentado, uma sequela publicada duas décadas mais tarde) é, como nos diz Mexia, o registo faceto. São meditações cheias de enlevo, tratando o absurdo por tu, capazes de o convidar e de o enxotar sem cerimónias, mas a comédia serve-lhe como diluente para os corantes das suas meditações. E não lhe faltam motivos, temas, curiosidades cintilantes em que se deter. Há nas páginas desta brevíssima odisseia imóvel, dando corda a esse fértil paradoxo, uma espécie de erudição negligente, e que explica o fervor com que o livrinho foi acolhido. Em curtos capítulos, um para cada um dos 42 dias de confinamento, De Maistre compensa a limitação do espaço com as assoalhadas da memória, a assombração dos mestres, e tudo sujeito ao ritmo vivaz de um bom paleio, estando o seu grande triunfo na forma como vai parodiando a moda dos livros de viagens. Assim, este modesto pintor de paisagens em São Petersburgo, ri de tudo, mofa dos grandes exploradores, registando “a latitude, o perímetro, a orientação e a disposição do quarto, como se fosse uma ilha selvagem e desconhecida” (Mexia). Publicado anonimamente, este livro começa por fazer um elogio dessa forma de ociosidade que não paga bilhete, preferindo os prazeres que não custam nada. “Que todos os infelizes, doentes e enfastiados do universo me acompanhem! – Que todos os preguiçosos se levantem em massa! Enrique Vila-Matas também se aproveitou do seu exemplo, e embarcou neste delírio de jangadas partindo à descoberta do extremo de si mesmo: “a partir do nosso quarto habitual, sem sair para rua nenhuma, foi-nos dado o grande dom (que tantas vezes esquecemos) de contemplar a esfera que permite ver a simultaneidade do universo”, escreveu o espanhol. “Vamos, coragem, partamos”, encoraja-nos De Maistre. “Acompanhai-me, todos vós que uma mortificação de amor, uma negligência de amizade retêm nos vossos aposentos, longe da pequenez e da perfídia dos homens.” Poderíamos acrescentar a estas desventuras uma peste, o nosso tão inoportuno vírus, que agora nos estende um convite para integrarmos a grande irmandade da sornice, seguindo este petulante aristocrata na sua viagem tão mais desafiante por se furtar a um destino: “caminharemos por pequenas etapas, rindo, ao longo do percurso, dos viajantes que viram Roma e Paris”. E se a matreirice e o riso são as armas deste viajante que se propõe a “andar no encalço das próprias ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar manter um determinado percurso”, De Maistre não apenas nos convence com o seu riso admirável, mas vai expondo aos nossos pés as aves de cores mais subtis ou exuberantes que vai abatendo com uma pontaria que dá a sensação de as ter abatido não com chumbo mas com esse lirismo que se enquista no juízo dos grandes vagabundos mentais. E fique para prova este modo comovido de se olhar para a nossa cama: “Um leito vê-nos nascer e vê-nos morrer; é o palco variável onde o género humano representa à vez dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias medonhas. – É um berço guarnecido de flores; – é o trono do Amor; – é um sepulcro.”