Uma discriminação intolerável


O Governo não concedeu qualquer protecção aos advogados e solicitadores nesta época de crise, limitando-se a remeter para a CPAS toda e qualquer decisão relativa à concessão de apoios.


O que tem vindo a resultar claro dos apoios concedidos pelo Governo em resposta à crise económica causada pela epidemia de covid-19 é que esses apoios têm vindo a mostrar-se altamente selectivos, beneficiando apenas alguns, enquanto outros são deixados para trás. Na verdade, podemos considerar que os funcionários públicos, os trabalhadores dependentes e até as empresas têm vindo a beneficiar de alguns apoios por parte do Governo. Já em relação aos trabalhadores independentes, os apoios têm vindo a ser extraordinariamente reduzidos, limitando-se, nos termos do art.o 26.o do decreto-lei 10-A/2020, de 13 de Março, à possibilidade de pedir à Segurança Social um apoio máximo de 438 euros mensais durante meio ano, apenas no caso de paragem total da sua actividade. Isto significa que, se o trabalhador independente realizar qualquer trabalho durante esse período, perde o direito a esse apoio, mesmo que a quebra da sua actividade tenha sido de 90%. Da mesma forma, apenas os trabalhadores independentes na situação de paragem total da actividade têm direito ao pagamento diferido das suas contribuições para a Segurança Social (art.os 27.o e 28.o do decreto-lei 10-A/2020). Todos os outros trabalhadores independentes que tenham uma redução de actividade considerável, mas que não corresponda a uma situação de paragem total, ficam assim privados de qualquer apoio da Segurança Social e até do diferimento das contribuições.

Já em relação aos advogados e solicitadores, os mesmos nem sequer beneficiam desse reduzidíssimo apoio, dado que têm um regime de segurança social próprio, assegurado pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS). O Governo absteve-se, por isso, de lhes conceder qualquer protecção nesta época de crise epidémica, limitando-se, através do art.o 8.o do decreto-lei 10-F/2020, de 26 de Março, a remeter para a CPAS toda e qualquer decisão relativa à concessão de apoios, a aprovar através de regulamento próprio. Ora, essa decisão corresponde a uma manifesta desresponsabilização do Estado, em relação à situação dos advogados e solicitadores, que não pode deixar de legislar sobre a sua protecção social, em lugar de simplesmente a remeter para os regulamentos de uma instituição de previdência.

Dispõe o art.o 13.o da Constituição que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, proibindo essa disposição que alguém possa ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão da sua condição social. Da mesma forma, o art.o 63.o da Constituição garante a todos o direito à segurança social, o qual implica a protecção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência. Não pode, por isso, a protecção pelo sistema de segurança social ser restrita a situações de falta total de meios de subsistência, tendo de abranger igualmente a sua diminuição. E muito menos podem algumas categorias de trabalhadores independentes, como os advogados e solicitadores, ser excluídos das medidas de protecção social aprovadas pelo Estado, limitando-se este a remeter para as decisões da sua instituição de previdência.

O estado de emergência, se implica a suspensão de alguns direitos, liberdades e garantias, não implica a suspensão total dos princípios constitucionais como o da igualdade e o da protecção pela segurança social. É, por isso, imprescindível que o Governo faça cessar a discriminação intolerável que criou em relação aos trabalhadores independentes e, entre estes, especialmente em relação aos advogados e solicitadores.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990