Alguém tem de se compadecer deles. O recurso ao teletrabalho tem uma vítima imprevista, que é aquele patrão que vive agora o drama de um capataz sem ter a quem atazanar. Basta pensar na quantidade de funcionários que não têm já essa sombra nas costas, e que só precisam cumprir as suas funções, definir o tempo exacto que elas exigem, sem ter de manchar as horas com baba de caracol, nem de atardar-se em tarefas simples, ficar para lá do expediente, fumar palhas secas, beber infinitos cafés só para segurar a saia do tédio, ir em grandes expedições ao Nariz, caçadas em que só não dá, depois, para exibir o prémio, indo atrás do macaco que se baloiça provocadoramente dificultando a respiração, no fundo, todos esses exercícios desmoralizadores de um Sísifo de gabinete, a pôr ordem na papelada, arrumar os clips, organizar a memória em post-its, enquanto o capataz vai e vem, fazendo massagens à Ângela, e infernizando os demais. Não basta vir dizer que a situação está difícil para essas filas a perder de vista de funcionários, encolhidos nos seus curros e a tentar não dar nas vistas, fazendo os possíveis para dar a imagem de náufragos entre tanto que fazer. Porque num país que já toma o povo como um bando de madraços, o trabalho tem o seu quê de punição, constante acto de contrição, para ver se os bandalhos se axandram. E, assim, o importante é que, para que o funcionário garanta o seu sustento, a coisa lhe saia do pêlo, e se tem a sorte de não andar vergado nalgum campo de algodão, que a secretária seja uma charrua emperrada nalguma colina do inferno. E, sobretudo, nada de se distrair. Se for empregado de loja, mesmo não havendo cliente, que nem pense em abrir um livro, perder-se de auscultadores, armado em maestro a zanzar de batuta erguida, a fingir que conduz uma orquestra nessas invasões wagnerianas, nada de Cruzoés ou Quixotes a tresvariar. Nessa forma de ficção produtiva tudo o que cabe são vagares de galinhola. Por isso, de tanto se espancar no homem o gosto, o capricho imaginoso, é que ele acaba por desprezar a liberdade… “ele não sabe o que fazer com a liberdade”, notava Thomas Bernhard, e mesmo por estes dias, trancado em casa, sem ter de comportar-se como um mimo numa tempestade, a lidar com um perigo irreal, “mal se encontra livre ocupa-se com o abrir de guarda-fatos e cómodas, com a ordenação de papéis antigos, procura fotografias, documentos, cartas, vai para o jardim e revolve a terra ou corre em qualquer direcção de uma forma inteiramente absurda e inútil, quaisquer que sejam as condições atmosféricas, e chama a isso passeio”. Mesmo que esteja aterrorizado pela estuporada gripe e se recuse até a cumprimentar o sol na varanda, já terá feito de todos os seus intervalos um domingo retalhado, com esses pequenos trabalhos, dar uma coça na loiça deixando-a a escorrer na cozinha, como se chorasse, matar a fome várias vezes ao aspirador, arrumar as gavetas, devolver uma cronologia ao passado, mas nunca, por nada, aproveitar-se para recuperar o tempo perdido. Em vez de viver estes dias desorbitados como um condenado que se escapuliu, um escravo que se alforriou, mais depressa irá pintar as unhas do tédio do que irá trancar-se com a vida tão contida mas livre de vigilantes. Assim, é improvável também que os funcionários, públicos ou afins, sejam ressuscitados para a literatura ou outra dessas vagabundices criativas. Depois já de termos observado um minuto de silêncio, em respeito aos dramas do capataz, sem ter a quem maçar, ele que se julgava um timoneiro, e que estará por esta hora a dar-se conta da sua inutilidade (…e se não servir para outra coisa, este parêntesis é o último aviso: tratem de derramar uma lágrima por todos esses superiores hierárquicos da ordem mesquinha que nos governa nos chamados dias úteis), resta pensar nessa categoria do funcionário, de quem sempre se falou mal, sobretudo quando usavam a hora do expediente para escavar com uma colher ou uma caneta um túnel, subindo um pouco as nossas chances de evasão. Mas a este respeito, vamos passar a palavra para Carlos Drummond de Andrade, no fundo, um xarabaneco de repartição, desses que, na superfície dessas horas mortas, foi distribuindo pão por tantas impressões, sensações e gente, que é a receita de imortalidade num homem: a de se distribuir em multidões. Eis a mais vigorosa defesa e exemplo do que pode ser extraído de um funcionário que não esteja submetido à mesquinhez de um desses guardas prisionais, que introduzem mecanismos de confinamento e miséria em cada golpe de ar. E recorde-se que Drummond, que hoje é conhecido antes de tudo, e antes de quase todos os outros, como um grandessíssimo poeta, foi funcionário público, e durante 12 anos (entre 1937 e 1945), foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Cultura do “Estado Novo” lá do Brasil, ou seja, da ditadura do primeiro governo de Getúlio Vargas, que ficou marcado pela censura e pela forte repressão, em que a hierarquia dos capatazes tinha carta branca não só para amesquinhar toda a gente mas também para garantir que os mais danados ou infelizes iam bater com ossos numa cela, e, se refilassem, ainda levavam muito literalmente nas partes à vista, até as invisíveis ficarem de rastos. Na crónica que se segue, Drummond ataca a estupidez do seu tempo, a de todos os tempos, sem pegar de frente, o boi pelos cornos, como se costuma dizer. Mas uma coisa leva à outra, e, assim, nestes dias em que a liberdade está em regime de respiração assistida, com ventilador, pode ser que a ironia do poeta nos ajude a sair do teletrabalho para qualquer coisa melhor que um curro. Eis, por fim, a crónica:
Sempre se falou mal de funcionários, inclusive dos que passam a hora do expediente escrevendo literatura. Não sei se esse tipo de burocrata-escritor existe ainda. A racionalização do serviço público, ou o esforço por essa racionalização, trouxe modificações sensíveis ao ambiente de nossas repartições, e é de crer que as vocações literárias manifestadas à sombra de processos se hajam ressentido desses novos métodos de trabalho. Sem embargo, não se terão estiolado de todo, tão forte é, no escritor, a necessidade de exprimir-se, dentro ou fora da rotina que lhe é imposta. Se não escrever no espaço de tempo destinado à produção de ofícios, escreverá na hora do sono ou da comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel – no interior do próprio cérebro, como poetas prisioneiros da última guerra, que voltaram ao soneto como uma forma que por si mesma grava na memória.
E por que se maldizia tanto o literato-funcionário? Porque desperdiçava os minutos de seu dia, reservados aos interesses da nação, no trato de quimeras pessoais. A nação pagava-lhe para estudar papéis obscuros e emaranhados, ordenar casos difíceis, promover medidas úteis, ouvir com benignidade as “partes”. Em vez disso, nosso poeta afinava a lira, nosso romancista convocava suas personagens, e toca a povoar o papel da repartição com palavras, figuras e abstrações que em nada adiantam à sorte do público.
É bem verdade que esse público, logo em seguida, ia consolar-se de suas penas na trova do poeta ou no mundo imaginado pelo ficcionista. Mas, sem gratidão especial ao autor, ou talvez separando neste o artista rond-de-cuir [burocrata], para estimar o primeiro sem reabilitar o segundo.
O certo é que um e outro são inseparáveis, ou antes, este determina aquele. O emprego do Estado concede com que viver de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para om número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados imediatos, porém não abre perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome e nem o fausto: sente o peso dos regulamentos, que lhe compete observar ou fazer observar; o papel barra-lhe a vista dos objetos naturais, como uma cortina parda. É então que intervém a imaginação criadora, para fazer desse papel precisamente o veículo de fuga, sorte de tapete mágico, em que o funcionário embarca, arrebatando consigo a doce ou amarga invenção, que irá maravilhar outros indivíduos, igualmente prisioneiros de outras rotinas, por este vasto mundo de obrigações não escolhidas.
Retire-se tal rotina ao temperamento literário a que me reporto, e cessará sua veia criadora. Instalado confortavelmente num escritório de capitão de indústria, já não se produzirá essa inconformidade entre o real e o individual, que tantas vezes gera a obra de arte. As forças de ação aplicam-se ao objeto imediato, e o homem fabricará as coisas de uso cotidiano, planejará a competição nos mercados, desprezará tanto o ofício das letras como as frágeis produções de seus oficiais.
Cortem-se os víveres ao mesmo temperamento, e as questões de subsistência imediata, sobrelevando a quaisquer outras, igualmente lhe extinguirão o sopro mágico. Há, é claro, os exemplares da boêmia ou da miséria fecunda, que nos legaram obras imperecíveis. Mas aqui se trata de certo tipo de criador literário, aquele que não ama velejar por mares lendários nem ancorar à sombra do botequim: o escrito homem-comum, despido de qualquer romantismo, sujeito a distúrbios abdominais, em geral preso à vida civil pelos laços do matrimônio, cauteloso, tímido, delicado. A organização burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o.
Observa-se que quase toda a literatura brasileira, no passado como no presente, é literatura de funcionários públicos. Nossa figura máxima, aquela que podemos mostrar ao mundo como a que mais e desenganadamente aprofundou entre nós os negócios do coração humano, foi o diretor-geral de contabilidade do Ministério da Viação, Machado de Assis; e nas suas mãos, como lembra a sra. Lúcia Miguel Pereira: “a pena de burocrata não foi menos tocante instrumento de trabalho, nem menor penhor de independência e dignidade do que a ferramenta de operário nas de Spinoza”.
Raul Pompeia, diretor de estatística do Diário Oficial e da Biblioteca Nacional; Olavo Bilac, inspetor escolar no Rio; Alberto de Oliveira, diretor de instrução no estado do Rio, como também o foram José Veríssimo e Franklin Távora, respectivamente no Pará e em Pernambuco; Aluísio Azevedo, oficial-maior no estado do Rio e cônsul; Araújo Porto-Alegre, cônsul; Mário de Alencar, diretor de biblioteca na Câmara; Mário Pederneiras, taquígrafo no Senado; Gonzaga Duque, oficial da Fazenda na prefeitura do Rio; B. Lopes, empregado nos Correios, como Hermes Fontes; Ronald de Carvalho, praticante de secretaria e depois oficial do Itamaraty; Coelho Neto, diretor de Justiça no estado do Rio; Humberto de Campos, inspetor federal de ensino; João Ribeiro e Capistrano de Abreu, oficiais da Biblioteca Nacional; Guimarães Passos, arquivista da mordomia da Casa Imperial; Augusto de Lima, diretor do arquivo público de Minas; Araripe Júnior, oficial do Ministério do Império; Emílio de Menezes, funcionário do recenseamento, Raimundo Correia, diretor de Finanças do governo mineiro em Ouro Preto; Luís Carlos Pereira e Silva, da Central do Brasil; Ramiz Galvão e Constâncio Alves, respectivamente diretor e chefe de seção da Biblioteca Nacional; José de Alencar, diretor e consultor da Secretaria de Justiça; Farias Brito, secretário de governo no Ceará; Lúcio de Mendonça , delegado de instrução pública em Campanha; Manuel Antônio de Almeida, administrador da Tipografia Nacional e oficial da Secretaria da Fazenda; Lima Barreto, oficial da secretaria da Guerra (escrevia romances nas costas do papel almaço, usado, da repartição); João Alphonsos, funcionário da Secretaria das Finanças em Minas; o grande Gonçalves Dias, oficial da Secretaria de Estrangeiros… Mas seriam páginas e páginas de nomes, atestando o que as letras devem à burocracia, e como esta se engrandece com as letras, mesmo através de contato fortuito, como foi o caso de alguns exemplos citados sem método.
Sem método, escrevo tais coisas pensando nos poetas, nos contistas, nos ensaístas que a esta hora ainda não sabem o que o são, e lentamente se elaboram na Diretoria de Águas, no lapse, na Divisão de Fomento da Produção Vegetal. Há que contar com eles, para que prossiga entre nós certa tradição meditativa e irônica, certo jeito entre desencantado e piedoso de ver, interpretar e contar os homens, as ações que eles praticam, suas dores amorosas e suas aspirações profundas – o que talvez só um escritor-funcionário, ou um funcionário-escritor, seja capaz de oferecer-nos, ele que constrói, sob a proteção da Ordem Burocrática, o seu edifício de nuvens, como um louco manso e subvencionado.