Almeirim leva a sua biblioteca de porta em porta

Almeirim leva a sua biblioteca de porta em porta


Face à emergência sanitária desencadeada em resposta à pandemia, a Biblioteca Municipal de Almeirim reagiu através de uma iniciativa que está a levar livros de porta-a-porta e que faz lembrar o serviço de bibliotecas itinerantes da Gulbenkian


Em tempos a estrada que se ia fazendo tinha coisas que dizer à cultura. Um país era palmilhado, os nomes grassavam num cultivo de um lugar firme, interior, despontavam como exuberantes silvas em sinal do apreço e cuidado pelas coisas que se vira, tocara. E não falta ainda quem guarde memórias, sejam suas ou de ouvir falar, das bibliotecas itinerantes, de alguns desses personagens que levavam uma escolha generosa de livros pelas estradas, para que as populações mais esquecidas pudessem ter da língua uma ideia mais lavrada, por extenso, com a imaginação a abrir o seu poço no centro de uma realidade tantas vezes tramada. A iniciativa mais importante foi da Fundação Calouste Gulbenkian, e foi criada por sugestão de Branquinho da Fonseca, em 1958, quando entre o país que ia à frente, puxando, e outro que seguia atrelado, viviam-se duas épocas distintas, separadas por séculos, embora não distassem mais de que alguns quilómetros. Dois poetas, Herberto Helder e António José Forte, estiveram encarregues deste serviço, e Forte dedicou-lhe vinte anos de uma vida que não foi muito longa. A carrinha vermelha que não foi mais vista pelas estradas deste país desde o início deste século, estacionou como um humilde mas tão simbólica metáfora de um tempo em que as propostas culturais tinham a sobriedade de um gesto que não requer grande alarido, que não busca o imediatismo sensacionalista, mas vai afectando a vida secreta daqueles que aproveitam esses gestos firmes. Durante décadas, houve leitores para incitar a outros essa paixão, e tentou-se abranger todo o território nacional, incluindo os arquipélagos. O serviço era gratuito, os livros andaram a ler as mãos rudes e miúdas, estiveram por quartos e buracos, souberam das vidas secas, difíceis, nas regiões mais desfavorecidas, e levaram a muito miúdo por esse país que se perde nos bolsos, que não vai mais longe que um assobio, uma insuspeitada extensão dos domínios da intimidade e da razão. Em vez de sair cambaleando pelas ruas a ver viver uma existência tão machucada, em vez de levar-se apenas os olhos enodoados por “homens – sacos de digestões com máscaras de desejos moles –, mulheres com violinos quebrados nos olhos, moços de calças pardas, e, sobretudo, inúmeros perfis de aceitação” (José Gomes Ferreira), era possível espreitar por ângulo capaz de dar vida a perfis de pedra, e para isso contava essa fé nas vidas dos outros que a literatura tanto instiga.
Entretanto, já vai longa a prosa para a notícia que foi ficando para este depois dos dias de hoje. Com estado de emergência, esta coisa de as ruas serem um filme lento que olhamos pela janela, sujeita a este monocórdico e doce lamento da chuva, as nossas existências estão dobradas, e não serão poucos aqueles que se viram enfiados em gavetas, quartos minúsculos, aguardando que o vírus se sacie. Entre os tantos espaços públicos cujo acesso nos foi impedido, contam-se as bibliotecas. E se são poucos aqueles que hoje recorrem a estas como suplemento vital da respiração, como lançar um bote o mar feito dessa tumultuosa corrente de respirações sustidas ao longo de séculos, por escrito, há aqueles que não se contentem com os meios digitais, e ainda há alguns que não beneficiam dessas comodidades. E foi a pensar nesses que a Biblioteca Municipal de Almeirim pôs em prática um serviço que entrega porta-a-porta os livros que sejam requisitados. “Livro à Porta” é o nome do projecto, e que não precisa de grandes explicações, pois tem a sensibilidade e presteza dessas ideias que um desastre ou uma pandemia inspiram, e que talvez possam deixar marcas e perdurar quando a normalidade voltar a impor-se, com o seu naufrágio de tudo o que motiva um sentimento de fraternidade.
Os funcionários da biblioteca transformam-se, assim, por uns dias em carteiros de poetas, romancistas, ensaístas, e tecem uma rede para essas vibrações capazes de afastar a desolação. Os livros podem ser pedidos por email, ou acedendo ao catálogo online da biblioteca, mas é possível também telefonar, enviar uma carta. E para os leitores da Ilíada, com receio de que os livros possam servir como Cavalo de Tróia ao novo coronavírus, a biblioteca garante que tantos estes como os sacos de transporte serão devidamente desinfectados, e que depois disso, ainda permanecerão em quarentena por quatro ou cinco dias antes que possam ser novamente emprestados.