Quando se fala de beleza terrível tem de ser esse o som que logo se impõe, num ambiente denso, enevoado, em que o público testa não só o seu gosto e ouvido, mas também a sua paciência e mesmo vulnerabilidade, tentando seguir os improvisos labirínticos dessa forma musical altamente sofisticada e que só sabe de si pisando a linha, os seus limites. Ninguém sabe exactamente como se chega a esse som desabrido, apurado nas caves do inferno, só se sabe quando este já tomou conta. Ellis perdera a paciência a partir do momento em que o jazz se pôs a barafustar consigo próprio, num desespero coçado de quem se rebusca todo, procurando alguma fórmula infinita e esquecendo que esta música “só tem um caminho e esse caminho é em frente” (Dizzie Gillespie). Muitas vezes, seguir em frente passa por reencontrar o sentido original, selagem e imprevisível, puro. Deixar de lado as derivas fusionais e não desbaratar o que permanece vivo, integrando uma tradição onde as versões sucessivas dos clássicos lançam bem mais longe a linha do que a invencionice que já não ouve ninguém e nem a si mesmo. Se Ellis Marsalis alcançou o estatuto de mestre foi mais pelos seus dotes de ouvidor do que enquanto um dos exploradores dessa forma de invenção sobre-humana. A lenda de Nova Orleães morreu ontem aos 85 anos, infectado pelo novo coronavírus. A cidade onde nasceu, onde o seu pai foi um dos primeiros proprietários negros, vê-se na linha da frente desta emergência sanitária nos EUA, e isto quando estão longe de ter sarado as feridas da devastação causada pelo furacão Katrina há década e meia. Ellis estava internado desde sábado e acabou por sucumbir ao Covid-19, juntando o seu nome a uma lista de vários artistas desaparecidos nos últimos dias.
Patriarca de uma prodigiosa família cujo impacto não pode ser sobrevalorizado na reafirmação do jazz nas últimas décadas do século passado, pai de seis, Ellis transmitiu-lhes esse modo de respiração circular que permite inspirar mais fundo e chegar mais longe com cada sopro. Assim, viu quatro deles – Wynton, Branford, Delfeayo e Jason – abrir caminho no jazz, e alcançarem posições de relevo, carreiras proeminentes que, por sua vez, relançaram também a de Ellis, e isto aproveitando as coordenadas que lhes deu, o amadurecimento dentro de uma tradição que foi decisiva para a expressão do espírito angustiado de toda uma época e que, do mesmo modo, pode voltar a dar-nos algumas pistas agora que, de novo, as coisas estão a ficar muito difíceis. E, a este propósito, vale a pena recordar as palavras de Sten Kenton: “Penso que a espécie humana está a viver coisas pelas quais nunca passou, modos de frustração nervosa e de desenvolvimento emocional bloqueado que a música tradicional é completamente incapaz não só de resolver como sequer de expressar. Por isso é que acredito que o jazz é uma nova música que veio na altura certa.”
Pianista e professor, Ellis passou décadas a fazer o trabalho de um senhorio, com os pequenos consertos, a mudar lâmpadas, a garantir a manutenção de um edifício que, se não estava a ruir, estava longe do seu período de graça, com os clubes de jazz a irem para lá do bebop numa zaragata de anseios expansionistas em que o free jazz ameaçava “dar cabo da espinha dorsal da tradição do jazz”. Nesse sentido, ainda que fosse um purista, Ellis congeminou no próprio sangue uma espécie de insurreição, e, na década de 80, depois de os ter guiado, viu os dois filhos mais velhos liderarem um movimento que ficaria conhecido como os Young Lions e que representou um revivalismo com novas caras daquela tradição, o qual ganhou projecção a nível nacional e fez da família Marsalis o epicentro desta nova esperança para o jazz. Como lembram Giovanni Russonello e Michael Levenson no obituário de Ellis no The New York Times, os irmãos surgiram como “renegados” menos interessados em que lhes fosse elogiada a forma de tocar do que a força espiritual, o esforço para que os seus espíritos lhes servissem de guia, porque não há perigo nenhum em levar uma forma de arte ao limite se isso não representar uma busca pela verdade, por algo que se pode descobrir sobre si mesmo. “Wynton, com o trompete, vinculou-se de forma audaciosa à devoção do pai por heróis como Charlie Parker e Thelonius Monk, e lançou invectivas públicas contra as experiências fusionistas com o rock que haviam atirado o jazz acústico para a berma da estrada no final da década de 60 e na de 70.” Foi esse o clamor para um motim que terá começado na resmunguice erudita de um homem dirigindo-se aos próprios botões. De resto, se Ellis pouco tinha gravado até então, foi com essa nova geração, que incluía outros dos seus antigos pupilos – como Terence Blanchard e Harry Connick Jr. –, que o jazz voltaria a entrar nos eixos, e sucederiam-se uma série de registos discográficos que recuperam o legado que fez do jazz essa arte tão vital que parece estar “a dirigir-se permanentemente para o grito” (Geoff Dyer), dando-lhe um novo fôlego, dotando-a de um renovado propósito e sentido de urgência. Assim, Branford Marsalis ao anunciar a morte do pai, rendeu-lhe nesse mesmo fôlego uma tocante homenagem: “O meu pai foi um gigante como músico e como professor, mas foi ainda maior como pai. Ele pôs todas as suas forças e inspiração na tarefa de fazer de nós o melhor que podíamos ser.” E um sinal desse salto mortal que às vezes só é possível quando um pai relata as suas aspirações aos filhos, o reconhecimento de que a paixão assim transmitida enobrece o sangue chegou já este século, com os Marsalis a serem reconhecidos como a família real do jazz, em 2011, quando o clã foi apontado pela National Endowment for the Arts como N.E.A. Jazz Masters. E esta foi a primeira vez que a mais elevada honra do jazz não era atribuída numa base individual.