Coronawashing


O vírus tem as costas largas, serve de desculpa para restrições de direitos à margem da Constituição e da lei. Muitas ficarão para lá do termo do estado de emergência.


A humanidade lava maniacamente as mãos na esperança de cada um de não ser contagiado pelo vírus do momento. Há quem use o corona para lavar práticas que seriam normalmente tidas por perigosas, imorais, ilegais, atentatórias da Constituição ou do Tratado da União Europeia. O medo é um espantoso dilatador do orifício da consciência. Em nome do combate ao vírus, o que está o caro leitor disponível para aceitar? Tudo, uma colherada de cada vez. E não tem sequer de começar pela colher de chá, como se vai fazendo por Portugal.

Na Hungria, o coronawashing foi servido com a concha da sopa. O estado de emergência foi aprovado sem termo, com instauração do Governo por decreto, sem controlo parlamentar e a cominação da pena de cinco anos de prisão para quem espalhe notícias falsas (medida falsamente bem-intencionada e que se destina a acabar de vez com a liberdade de imprensa, por via da autocensura dos jornalistas).

Em Portugal, a versão bis do decreto presidencial declarando o estado de emergência procurou proteger várias das iniciativas governamentais na matéria que careciam de habilitação e anunciou a ratificação retroactiva das mesmas, o que é de muito duvidosa constitucionalidade, como foi já apontado por diversos juspublicistas. O decreto lançou também uma sementinha em matéria de protecção de dados, permitindo a comunicação por SMS da DGS com os cidadãos. Chegaremos à pulseira electrónica sob forma de telemóvel ou ao livre-trânsito electrónico atestando o carácter não pestífero?

A ii Guerra Mundial, a Guerra Fria, o 11 de Setembro e episódios menores exigiram medidas de excepção fortemente restritivas dos direitos dos cidadãos. Passadas as circunstâncias, muitas das restrições permaneceram, umas às claras, outras escondidas. O controlo do Estado sobre os cidadãos não parou de aumentar. A chegada das novas tecnologias, das redes sociais e das hiperempresas das tecnologias de informação não diminuiu o grau de controlo, antes promoveu a subcontratação de privados ou a partilha entre fins de controlo político e de controlo comercial. O estádio actual do capitalismo é o da vigilância, com acumulação da mais-valia dos dados por parte de empresas privadas.

A pressão social induzida pelo medo e pela manipulação mediática dos terrores populares põe à prova os limites impostos pela Constituição. O texto constitucional não vale apenas nos dias de sol, vale sobretudo perante circunstâncias que colocam em risco o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias. Defender o regime constitucional do estado de emergência significa defender a “aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania” (CRP, 19.o, n.o 7) e garantir, também por via de recurso aos tribunais, o respeito dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade nas concretas restrições de direitos, liberdades e garantias que sejam objecto de suspensão.

Fazê-lo exige coragem por não ser objecto de imediata recompensa mediática e por ir contra o sentir popular de quem quer restringir sem medida nem justificação. Do lado bom da barricada constitucional, há que saudar a recente intervenção da provedora de Justiça, que recordou às autoridades locais e regionais de saúde o óbvio do regime constitucional da restrição de direitos mesmo em estado de emergência. No tempo do vírus, o respeito pela Constituição não é, infelizmente, contagiante.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990