A Cultura a fazer pela vida, farejando apoios, pedinchando esmolas

A Cultura a fazer pela vida, farejando apoios, pedinchando esmolas


Mais de cem artistas assinam uma carta-aberta da SPA dirigida às autarquias em que se pede ao poder local o seu “apoio solidário” para salvar a Cultura, e que, com esse fim, sejam mantidos os pagamentos a autores e artistas, de iniciativas adiadas ou canceladas.


É costume ouvir dizer que sem o apoio às artes a Cultura morre. Menos comum, e certamente menos popular, é que se chegue a questionar se uma Cultura que só existe em função desse apoio não merece morrer para dar lugar a outra coisa. Por estes dias, a maré desses apoios recuou de tal modo que o espaço ficou abandonado, e à medida que os devaneios artísticos se reduziam aos gargarejos de artistas nas redes sociais, nessa sanha da visibilidade permanente em que entre o artista e o seu público apenas se ergue um reflexo embaciado, um filtro de nevoeiro, que serve para retardar a sensação de que se está a falar sozinho ou para o boneco, a resposta da cultura ainda não soube adaptar-se, tornar-se relevante numa altura em que se espera que dê outras respostas, mostre um alcance que não se confunda com o das meras distracções. Por agora, essa tentação de fingir que o espectáculo tem de continuar remete-nos cada vez mais para uma sessão espírita e nocturna, cada vez mais confrangedora. Por agora, para não nos ficarmos por uma visão demasiado desapiedada das coisas, o melhor será citar Tony Morrison: “Esta é precisamente a altura em que os artistas vão trabalhar. Não há tempo para o desespero, nem espaço para a auto-comiseração ou para o medo. Nós falamos, nós escrevemos, nós apertamos as malhas da linguagem. É assim que a civilização convalesce.” E, no entanto, é difícil não sentir que há qualquer coisa de pavloviano na reacção mais comum dos nossos artistas, que se limitaram a partilhar conteúdos, socorrendo-se de vagos paralelismos com a presente crise para justificar esse voluntarismo um tanto inútil, ou a tentação de olhar para as mãos que normalmente esfarelam o miolo de pão em busca de algum tipo de apoio, subsídio, caridade ou clemência. Logo se ergue a mesma serpente fantasmagórica, a de toda uma geração que aceitou viver integrada na sociedade de consumo, e presumir que teria condições de sobrevivência se não cuspisse no prato, não mordesse a mão que a alimenta. Só que estaria condenada à condição de bufão, o artista de variedades que deve colocar um grão de malícia para cada dois ou três de subserviência. Mas a cada acidente, chegam os agentes, afastem-se, afastem-se, acendem-se luzes, subitamente duplica-se a audiência perante um fenómeno para o qual ninguém tem respostas, e o artista dilui-se entre essas pessoas vagueando nos seus roupões, aturdidas pelo sono, lembrando uma cena descrita por Ray Bradbury, no romance “A Morte é um acto solitário”: “Assemelhávamo-nos a uma multidão de palhaços miseráveis, abandonados na ponte, olhando para baixo, para o nosso circo submerso.” Se não estivessem tão enfatuados consigo mesmos, talvez os artistas pudessem rever-se neste quadro, encarando os seus reflexos esbatidos contra as janelas desses locais perdidos onde há quem coloque à venda “os últimos pedaços gastos das suas almas, desejando que ninguém os comprasse”. Mas vamos à notícia, à marcha desses sindicatos de artistas como a Sociedade Portuguesa de Autores que divulgou hoje uma carta-aberta dirigida às autarquias para lembrar que “a Cultura precisa do apoio solidário do poder local”, pedindo que sejam mantidos os pagamentos a autores e artistas pelas iniciativas adiadas ou canceladas. E depois vem o rol dos signatários, mais de cem “Figuras, Figurantes e Figurões”, entre os quais se fazem destacar esses nomes que de tão supostos ali nem precisavam de se ter dado ao trabalho, esses que se repetem nas filas de sopa e pão, e que, em havendo brioche, não deixam de lhe deitar a mão. A SPA vem assim pedir que as autarquias “procedam ao pagamento urgente, aos autores e artistas, de 30%, no caso de adiantamentos, e de 50%, no caso de cancelamentos, dos respetivos valores em eventos a realizar e já contratualizados". A instituição que se tem dedicado há anos a uma cartelização de um sector em que deveria imperar um certo desconcerto produtivo, uma autonomia radical que permitisse que as artes não se confundissem com uma qualquer indústria, uma agência de talentos a contrato, gerida de forma bastante opaca por uns “artistas” sempre tão habilidosos em fazerem-se servir do Estado, é esta instituição que vem falar em nome dos artistas, e uma vez mais vem fazê-lo para efeitos de pedinchice. E desde logo a SPA não se esquece de assinalar o pacto que há entre os artistas e as autarquias, “que contaram muito ativamente com aqueles sempre que foi necessário”, os quais “agora contam com as autarquias no gravíssimo momento que vivem e não se esquecerão da solidariedade que receberem”. Por isso, através desta carta, a SPA quer sensibilizar os "308 municípios e as centenas de juntas de freguesia e outras entidades promotoras", neste "alarmante contexto de crise causado pela pandemia". E como não podia deixar de ser, o apelo dos artistas rende-se também à babugem do discurso afectado dos tecnocratas, lembrando que as actividades promovidas ao abrigo desta forma de parceria "tem contribuído expressivamente para o desenvolvimento económico do país e para o fortalecimento da sua identidade local e regional". Sem supresa, a SPA saca desse violino cujas cordas não são sequer de arame mas de teias de aranha, e arranca delas a mais azucrinante das melodias: "A cultura tem ajudado a criar emprego, a aumentar a atractividade internacional e a coesão nacional e também a fazer convergir as estruturas políticas locais com a visão dinâmica de algum setor empresarial. Muito do que foi feito tem a marca distintiva e de excelência da cultura, intenso factor da própria identidade europeia", enfatiza a SPA. Que raio se passa para que os agentes culturais sejam vistos a recorrer a esta conversa de vendedores de carros usados, sempre a tentar engrupir, sempre com estas visões idílicas em que a Cultura surge como uma razão de natureza serventuária, qualquer coisa que vem fazer um servicinho ao poder? Que tem de se mostrar atractiva, pôr-se a assobiar ao espelho, apalpar a coxa, expor-se como algo de desfrutável. E vem à cabeça a resposta de João César Monteiro: “Queriam telenovela, era?” Porque o serviço público que temos, “que não serve de nada nem a ninguém”, só nos oferece sucedâneos das telenovelas. E ao público que se formou neste entendimento, o que dizer? Bem, se estão contentes com esta chanchada, aqui vai mais da carta-aberta dos vossos artistas: "As autarquias nacionais, na sua riqueza e diversidade, não podem deixar de corresponder ao apelo que, por esta via, lhes endereçamos, convictos de que a aceitação desta proposta, que é convergente com as preocupações centrais do próprio Ministério da Cultura, permitirá ao setor da Cultura, numa fase crítica de incerteza e privação, enfrentar os anseios e as carências mais alarmantes. Afetar a sustentabilidade financeira da vida cultural é empobrecer a democracia, a cidadania e a capacidade de realização de amplos setores da população", salienta a cooperativa de autores, que conta com "mais de 26.000 associados".