Getty e o museu virtual da Pandemia

Getty e o museu virtual da Pandemia


O Museu Getty desafiou os seus seguidores nas redes sociais a recriarem as obras dos grandes mestres em casa, e com os mais banais bens domésticos. Como seria de esperar, o rolo de papel higiénico não faltou à chamada, e é já o equivalente do sorriso de Mona Lisa com o qual posamos para a imagem que…


Se há coisa que a arte tem em comum com a Peste é a forma como escolhe os seus e priva-os de tanto, arranca-os à vida geral para se tornarem os obsessivos de certas particularidades. Assim, gera a sua própria doença e reclusão, e em troca expira esplendor e eclipse. Um efeito menos óbvio da pandemia com todas as suas restrições é o adiantado da hora que se faz e que parece escapar aos relógios. Ninguém sabe exactamente que horas são. Talvez estejamos todos já no território dessa vigésima quinta hora, com a distorsão e o grau de delírio de que a arte se faz valer. E é aqui que o Museu Getty entra em cena, desafiando quem está em casa a atravessar os mais densos espelhos que temos à nossa disposição. E que tal se a vertigem do isolamento neste poço que vamos escavando entre quatro paredes pudesse ser aproveitada para recriar as grandes obras-primas? Como se poderia esperar, os resultados variam estrondosamente, e o humor chega a ser lancinante, nuns casos, ao passo que noutros, a inspiração toma um rumo um tanto perturbador. O certo é que os utilizadores de redes sociais corresponderam de forma exultante à proposta do célebre museu californiano, e nessa espécie de mosaico criado a partir dos ecos visuais desta iniciativa há quem se sirva de tudo, pedindo aos animais de estimação que colaborem e deixando até marcas dos aspectos mais inusitados desta quarentena, como seja o ter feito dos rolos de papel higiénico um moderníssimo ícone.

Este modelo de recriação proposto pelo Getty faz-se valer do constante desejo de exposição que hoje leva tantos para os museus interessados em colocarem-se em primeiro plano com as obras dos grandes mestres em pano de fundo, e, talvez por ter feito uma leitura tão arguta dessa vaidade cujo secreto anseio é vestir tudo, fazer da arte o seu adorno, levantar os restos imortais de DaVinci e Rafael para fazer um casaco de peles, o museu conseguiu uma tão fervorosa adesão.
Com os quartos transformados em estúdios e ateliers, com os materiais que tivessem à mão, simples bens domésticos, criou-se uma exposição virtual com laivos da melhor tradição burlesca, e tudo tendo como rastilho a sugestão de se recriarem obras de arte conhecidas de todos. Foi assim que os seguidores do Twitter daquele prestigiado museu, convocados na passada quarta-feira, formaram e logo dissolveram escolas de artes para competir entre si, com resultados nalguns surpreendentes, das propostas mais hilariantes àquelas que revelam o génio que só a bruma inspiradora do tédio e das tantas horas para matar com volúpia e requinte explicam. Alguns dias depois os corredores do museu estendiam-se virtualmente numa exposição que ia no dorso das gargalhadas ou se perdia em barracas de feira diante de reproduções sacrílegas, quase macabras, dessas de enfurecer todos os santos e desafiar os deuses a levantarem o telhado e cuspir uma tempestade na sala de estar do artista. 

Mas este museu não é sequer pioneiro nesta astuciosa forma de se manter vivo e próximo do seu público, pois várias outras instituições e projectos artísticos têm revelado uma capacidade espantosa de arrumar com a solenidade e fazer do isolamento uma celebração dessas temperaturas que só o espírito regula. Nas redes sociais, dias antes da iniciativa do Getty, instaurou-se um museu de excentricidades a partir de experiências ad hoc que foram iniciados por “quatro colegas de quarto que adoram arte… e que estavam definitivamente sob quarentena”. Assim, surgia a conta @covidclassics onde este grupo de artistas a viverem nos EUA desencadeou esse movimento experimental que se lembrou de recriar clássicos como A Morte de Marat, de Jacques-Louis David… E à medida que a brincadeira ia ficando mais séria, respirando mais fundo o incenso do tédio, os trabalhos começaram também a tornar-se mais detalhados e aventurosos ao nível das técnicas usadas. Um dos trabalhos mais recentes, é uma versão da obra surrealista O Filho do Homem, de René Magritte, em que o quarteto não se limita a exibir a recriação mas convida a audiência a levantar a cortina e aceder ao estúdio e aos passos que foi preciso dar para conseguir que a maçã ficasse suspensa sobre o rosto de Sam Haller.