Governar a crise da covid-19: competência e solicitude, informação e confiança


Diz-se que a confiança no médico é meia cura – é verdade. O Governo está do lado do médico – a confiança que em si conseguir manter é, pelo menos, meia vitória sobre a crise.


A Assembleia da República e o sistema partidário estiveram particularmente bem na autorização ao Presidente da República para decretar o estado de emergência. Sendo eu crítico da situação a que chegou o sistema político, carente de reforma eleitoral urgente que aproxime eleitos e eleitores, devolva a democracia à cidadania e fortaleça a representatividade e a responsabilidade dos deputados, gosto de saudar tudo aquilo que corre bem. Foi o caso: os deputados e os partidos em geral estiveram à altura da gravidade e do perigo da crise de saúde pública que varre o mundo e atingiu também Portugal. Raros entraram pela “politiquinha” e saíram-se mal – os portugueses não gostam. Apesar da alta sensibilidade do instrumento pedido – estado de emergência –, a Assembleia não regateou ao Governo aquilo que o Presidente da República pedia e quis decretar.

A declaração do estado de emergência teve votos a favor dos deputados de PS, PSD, Bloco de Esquerda, CDS e PAN, bem como do deputado do Chega. E, embora as bancadas de PCP e Verdes, assim como o deputado da Iniciativa Liberal e a não inscrita Joacine Katar Moreira se afastassem da maioria, a verdade é que o fizeram com discurso moderado, não indo além da abstenção. Podemos dizer que estes cumpriram o “dever” de não deixar que uma decisão deste melindre fosse tomada por unanimidade – e, por isso, temos também de lhes agradecer.

Os deputados quiseram reforçar o estatuto político e legal do Governo para este poder tomar, a cada momento e sempre com respeito do princípio da proporcionalidade, todas as medidas que a evolução da crise exija para proteger os cidadãos – às vezes, de si mesmos – e vencer este vírus desconhecido, que não tem vacina nem medicamentos certos e ágeis.

O coronavírus pôs-nos a todos à experiência; e o Parlamento quis municiar o Estado com os poderes necessários para triunfar. O estado de emergência foi decretado pelo Presidente, com parecer positivo do Governo e do Conselho de Estado e concordância da Assembleia da República, por larguíssima maioria e nenhum voto contra. Nunca vi, em Portugal, um quadro político tão forte quanto este. Ainda bem. O Governo ficou como único vértice da observação e da condução deste combate pela saúde pública. No plano político e legal, nada lhe faltará. Todos esperamos que se saia bem desta prova. Não só esperamos como precisamos disso.

Os números e a progressão da covid-19 no nosso país são muito inquietantes. Até que a curva diária de novos casos e de mais mortes trave e estabilize, permitindo começar a esvaziar a pandemia, viveremos numa quarentena cada vez mais inquieta e angustiada. Procuraremos adivinhar o nosso futuro – o que é sempre incerto – e iremos olhando para os factos terríveis que nos chegam de Itália e de Espanha, infelizmente certos e horrendos. Mesmo arredondando as estatísticas italianas e espanholas para a nossa escala populacional, o panorama não se recomenda. É muito mau.

Nesse quadro, as autoridades têm de dar mostras de competência e solicitude e ser fonte permanente de informação e confiança. Diz-se que a confiança no médico é meia cura – é verdade. O Governo está do lado do médico – a confiança que em si conseguir manter é, pelo menos, meia vitória sobre a crise.

É muito importante que o Governo não deixe arrastar a controvérsia sobre os testes e não se fique por jogos de palavras. Se não há falta de testes de qualidade no mercado, devem ser feitos tantos quantos os requeridos pela nossa situação. Há dias, a Islândia, que aí centrou a sua estratégia, como a Coreia do Sul, teve de reduzir o seu esforço em razão da sua falta. Mas, se há testes e nós próprios podemos produzi-los, importa seguir por aí.

Não acompanho as especulações, que oiço e leio, de que o Governo teria a estratégia de fazer poucos testes para aparecerem poucos casos de contagiados. Não acredito que fizesse isso nem que a administração da Saúde fosse por aí. Não é só uma questão de honestidade e seriedade; uma estratégia dessas seria completa estupidez. Reduzir artificialmente o número de casos confirmados fá- -los-ia explodir mais tarde, com a imparável evolução da pandemia. E a redução do número de casos confirmados faria subir a taxa de letalidade, cujo incremento ninguém deseja ver. Qualquer Governo e qualquer autoridade sanitária deseja o mais precoce conhecimento da doença: para poder isolar o doente, poder tratá-lo e poder prevenir a sua morte. O conhecimento total, ao dia, do número de casos é bom para a saúde e é bom também para a política: a de saúde e a geral.

Mas o Governo – em particular, o Ministério da Saúde – não pode cometer erros na divulgação das estatísticas diárias da pandemia. Em 24 de Março, o total de mortes desde o início foi apresentado como sendo 29; pouco depois, mudou para 30; a meio da tarde, mudou para 33. Houve também, no mesmo dia e prolongando-se para anteontem, uma trapalhada na repartição geográfica dos casos confirmados que deu, pelo menos, uma polémica com o Diário do Minho. Foi-me difícil perceber o que se passava. Um quadro de “Caracterização demográfica dos casos confirmados”, imputando-os aos respectivos concelhos, não representa a totalidade, mas apenas uma parte – provavelmente por falta de informação concelhia dos restantes. Como é evidente, a imputação por município dos doentes confirmados aumenta a fiscalização da tabela – as pessoas de cada terra facilmente verificam se o relatório corresponde ou não ao que conhecem no seu terreno. A DGS acabou por aditar, mais tarde, esta nota: “Informação reportada relativa a 54% dos casos confirmados”. É melhor que nada. Mas não é brilhante, pois pergunta-se logo: e o que se passa com os outros 46%? Para estragar um pouco mais, no dia 25 de Março, a DGS actualizou, naturalmente, os totais do relatório com os dados do dia e voltou, na nova repartição geográfica, a repetir a nota: “Informação reportada relativa a 54% dos casos confirmados”. Mal. Sendo os dados outros no dia seguinte, só por raríssimo acaso a percentagem seria a mesma… Não era. Agora, os dados discriminados por concelho – fiz as contas – correspondiam apenas a 48% do total.

Estes lapsos são dispensáveis; e causam dano. Vale a pena investir em rigor e num bom revisor. O rigor é fonte da confiança. E confiança é aquilo de que mais precisamos na condução deste combate. Pela nossa rica saúde.

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990