Portugal está desde as 00 horas desta quinta-feira na fase mais crítica do plano de resposta à epidemia de covid-19. “Há transmissão comunitária”, disse ontem a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, explicando que é “pouco exuberante”, mas existe o risco de contágio na comunidade. O aumento de casos sem que seja possível estabelecer como é que o doente contraiu o vírus implica que passe a assumir-se, por precaução, que todas as pessoas com sintomas como tosse, febre ou dificuldade respiratória são casos suspeitos.
A porta de entrada para ter cuidados de saúde continua a ser a linha SNS24 mas a estratégia passa a ser separar doentes suspeitos de covid-19 ou com infeção confirmada de outras pessoas que precisem de cuidados de saúde, para reduzir o risco de contágio. O que vai implicar a ativação das áreas próprias nos centros de saúde e nos hospitais, os maiores já com tendas de campanha preparadas para receber e outros serviços ainda a adaptar-se, numa fase que Graça Freitas antecipou que terá alguma “turbulência” na resposta nos primeiros dias, em que é preciso fazer a transição para este novo modelo quando aqui os casos de covid-19 eram encaminhados para os hospitais de referência. Apesar de a resposta ser considerada essencial perante o previsível aumento de casos, as ordens dos médicos, enfermeiros e farmacêuticos tornaram ontem pública a preocupação de que a falta de equipamentos de proteção possa comprometer a resposta e consideram que o Governo não tem estado a acautelar o básico a quem está no terreno.
Numa carta dirigida ao primeiro-ministro e tornada pública depois de António Costa ter dito que até ao momento não houve falta de material, os três bastonários acusam o Governo de não estar a acautelar o básico e consideram que neste momento existe uma “preocupação real” de que quando for atingido o pico da epidemia possa não haver profissionais suficientes por terem “adoecido”. “Neste momento são várias as falhas de segurança, faltando desde máscaras, a luvas, fatos de proteção e desinfetantes alcoólicos, o que é extensível à rede de farmácias”, alertam.
O último balanço da tutela foi de 165 profissionais de saúde infetados, mas as estimativas das ordens apontam agora para números superiores, além dos profissionais em quarentena por terem estado expostos a doentes sem equipamento de proteção suficiente. Ontem o IPO do Porto confirmou que tem sete profissionais de saúde infetados, tendo a maioria contraído a infeção fora do hospital, uma situação que levou a que 51 profissionais tivessem de ficar em isolamento.
Falsa sensação de segurança Durante a pandemia, a orientação da DGS é para que todos os profissionais de saúde utilizem máscara cirúrgica. Os maiores hospitais como o São João, o Santa Maria, o Curry Cabral mas também os IPO já determinaram o uso de máscaras por todos os profissionais e doentes, mas há unidades onde o material não está ainda disponível e outras onde continua a ter de ser utilizado à margem das boas práticas.
Ao i, a bastonária dos enfermeiros Ana Rita Cavaco reconhece a dificuldade em abastecer neste momento, mas sublinha que a falta de material de proteção é transversal a várias a unidades e defende que a solução tem de passar no imediato por encontrar estratégias a nível nacional mobilizando a indústria. A ordem tem relato de equipas a preparar proteções para a cabeça com campos esterilizados, os panos azuis e verdes usados nos hospitais. “Apesar de ter havido a garantia de que chegariam novas encomendas esta semana, ainda não chegaram. Os equipamentos de proteção faltam em vários pontos do país e em larga escala, não só nos hospitais, mas nas farmácias, algumas sem desinfetante”, disse ao i o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães.
A preocupação foi também tornada pública por Tomás Lamas, médico intensivista do Hospital Egas Moniz, que na semana passada, antes de ser decretado o estado de emergência, tinha feito um apelo para que o país avançasse para as medidas de contenção social e encerramento dos serviços básicos.
Num texto publicado nas redes sociais, o médico considera um erro a atual estratégia em que serão separadas áreas para covid-19 e outras para outros doentes sem se assumir que todos os doentes podem ser casos suspeitos e que isso implica garantir material de proteção a todos os profissionais, acreditando que há o risco de se criar uma falsa sensação de segurança. "Esta falsa segurança resulta do elevado número de testes falsos negativos (teste negativo num doente com infeção COVID-19) e do quadro clínico com longo período de incubação sem sintomas. O que significa que qualquer doente proveniente da comunidade (onde a infeção já se espalhou) para ser operado e não tem sintomas COVID, é internado numa zona COVID negativo ou zona não COVID”, escreveu o médico. “O auxiliar, o enfermeiro e o médico confiam neste sistema e observam esse doente sem máscara, sem luvas, sem bata, sem óculos, correndo o risco de serem contaminados porque não sabem que aquele doente, ainda que sem sintomas, é um disseminador de doença. Consequentemente as três pessoas que aquele doente contaminou vão também contaminar os seus familiares ao regressarem a casa”, ilustra.
Ao i, Tomás Lamas, que está a trabalhar na resposta à covid-19, defende que, perante a escassez de materiais no mercado e a demora na entrega de encomendas, o Estado devia estar já a comprar matéria-prima para produzir cá os materiais necessários. “Tudo o resto é necessário mas os equipamentos são a única barreira entre nós e o vírus”, afirma, deixando um alerta: “As zonas covid são o sítio mais seguro neste momento”.