Quando, em outubro de 1987, Raymond Kennedy aplicou na esposa, Jennifer, um murro tão violento que a fez desabar pelas escadas abaixo da casa da família, teve um resto de consciência e percebeu, finalmente, que tinha deixado de ser Raymond Kennedy para se transformar num animal vulgar e bruto.
Jennifer saiu de casa nessa mesma tarde, com um olho negro, a cara inchada e a alma em sangue. O casamento durara 15 anos e tiveram dois filhos, Cara e Dale. Ray multiplicara engates atrás de engates durante essa década e meia. O seu colega de equipa no Liverpool Steve Highway ainda tentou defendê-lo: “Não conseguia fugir. Era contínuo. As mulheres viviam penduradas nele”.
No meio de gente como Ray Clemence, Terry McDermott, Kevin Keegan, Kenny Dalglish ou Ian Rush, talvez o nome de Ray Kennedy surgisse na linha de baixo, mas todos os que viveram a minha geração nunca poderão esquecer aquele que funcionava como o coração do grande Liverpool do final dos anos 70, jogando de cabeça erguida, passada firme, lançando os companheiros com solicitações precisas e defendendo com a rudeza necessária para quem disputa partidas de futebol na glorious mud.
Depois de ter ganho fama no Arsenal, Ray Kennedy chegou a Anfield em junho de 1974. Bem a tempo de ganhar cinco títulos de campeão inglês, três Taças dos Campeões Europeus e uma Taça UEFA (ganhara uma no Arsenal), pelo meio de outras minudências. Bob Paisley, um dos mestres desse inimitável Liverpool, escreveu sobre ele nas suas memórias: “Ray’s contribution to Liverpool’s achievements was enormous and his consistency remarkable. So much so, in fact, that on the rare occasions he missed a match, his absence was felt deeply simply because he was a midfield power house with tremendous vision and knowledge of the game… In my view, he was one of Liverpool’s greatest players and probably the most underrated”.
A partir de 1982, Ray começou a arrastar-se. Os companheiros sentiam que algo mudara profundamente na sua personalidade. Esteve no Swansea uma época, passou pelo Hartlepool United, pelo Pezoporikos, de Chipre, e finalmente arrumou as botas no Ashington. Tudo muito pobre para o grande Ray Kennedy. Tinha 34 anos.
O inimigo Um inimigo invisível invadira, entretanto, o organismo de Ray. De um momento para o outro, as forças faltavam-lhe. Às vezes eram os colegas que o arrastavam até casa. Outras vezes tornava-se necessário chamar uma ambulância, de tal ordem se mantinha paralisado. A doença de Parkinson dominara-o por completo. Numa entrevista a um jornal inglês, quando lhe perguntaram que figura pública mais gostaria de conhecer, balbuciou: “Muhammad Ali”. Era um enfermo solicitando a companhia de outro que sabia mais do mal do que ele próprio.
Ray Clemence, antigo guarda-redes do Liverpool, recordou: “Ele sempre foi estranho. Muito calmo, muito educado, mas se de repente encontrava algo fora do lugar, explodia. Era preciso tratá-lo com cuidado”. A doença já tinha fincado as suas raízes.
Em 1987, Ray Kennedy bateu no fundo. Era um destroço. Não conseguia sequer apertar os botões da camisa e era acometido de tremuras súbitas nos braços e pernas. Distante da família e dos amigos, parecia ansiar pela morte. Vivia numa casa sem quaisquer condições em New Hartley, perto de Blyth, no Northumberland, sofria de alucinações constantes e em muitas delas perdia totalmente a consciência de quem era. Os médicos diagnosticaram-lhe “paranoia aguda” e acabou por voltar a ser internado.
Finalmente, um tratamento firme à base de apomorfina mudou alguma coisa. Alguns adeptos gratos passaram a visitá-lo com assiduidade, ligaram-no ao mundo através dos computadores e da internet, conseguiram mesmo que ele aceitasse ir ver um jogo a Anfield. Começou por recusar: “By God! Já ninguém sabe quem eu sou”. Estava completamente enganado. Ao subir ao relvado, o Kop desenhou com cartolinas o número 5 com que fez carreira no clube. Raymond Kennedy chorou como um menino…