Alejandra Pizarnik. Alice no país do já visto

Alejandra Pizarnik. Alice no país do já visto


Com selo da Tinta da China e tradução de Fernando Pinto do Amaral, chega-nos por fim uma antologia de uma das mais lidas, imitadas e mitificadas poetas do século XX, mas no esforço por colher uma amostra representativa, a selecção estraçalha a música interior e a subtileza dos livros de Pizarnik.


Tinha trinta e seis anos, pouco menos que Rimbaud já condenado à morte, tentando regressar a Harar, diluído em febres, cheio de dores no coto e nas virilhas depois de lhe terem amputado a perna rente ao tronco. Já ela tomou cinquenta comprimidos de um barbitúrico popular na altura, o Seconal, e diz-se que enquanto aguardava que fizessem efeito e a luz se dissipasse de vez, pôs-se a maquilhar as suas bonecas, como se lhes contasse o que fizera, que não havia volta a dar, e que, aliás, há muito já que para ela era tarde demais. Desfez-se nessas bonecas, deu corda aos velhos “espectros nocturnos, medos infantis”, e lá se foi pela mão do terror e da sua canção de embalar. Isto passou-se há quase 50 anos, mas o cheiro daquele destino fatal persiste nos versos, e lembra-nos da frase que sublinhou no admirável prólogo (“O desconhecido de si mesmo”) da antologia de Fernando Pessoa que lhe foi oferecida pelo tradutor, Octavio Paz. “E isto, a fatalidade, é o que distingue um escritor autêntico de um que simplesmente tem talento.”

A maldição de Alejandra Pizarnik foi-se desdobrando à medida que tentava provar a si mesma que a sua virtude estava além da obsessão, e que, se o fracasso era o seu destino, estava disposta a ir até ao fim. Também provou o pouco interesse que tinha em que se apiedassem dela. Tinha pavor de ser confundida com aqueles que não fazem mais que produzir “bibelots decorativos”, e que fazem trinta por uma linha, experimentam de tudo, ao ponto de se inflingirem maus tratos, expondo-se, humilhando-se, nessas estratégias vulgares de quem, também na poesia, se limita a suplicar um pouco de atenção.

“Tortura-me o meu estilo – no fim de contas é do que se trata. Tortura-me pensar que nunca serei capaz de uma bela prosa”, escreve no seu diário. E mais à frente: “O problema é o de sempre. Não tenho textos finalizados.” As suas anotações, os modos de se revolver na sua própria consciência, os tantos sublinhados e marcas de leitura, dizem-nos muito sobre uma espécie de fé negra que pôs na sua obra. A escrita surge, assim, como uma forma de deslocar a paixão para algo que resiste à própria vida, que está um tanto além dela. Há ali um princípio de abandono, algo que Pablo Javier Pérez López vinca no seu instigante ensaio “Pessoa, Paz, Pizarnik: fragmentos para um diálogo”, publicado na revista Pessoa Plural, em 2014. “Quem sublinha um livro fala com profundidade, como se não escondesse a voz”, escreve o ensaísta espanhol. “Há quem deixe os olhos fixos a meio de certas linhas dos livros e estes tornam-se os olhos eternos de antigos leitores (…) Sublinhar um livro pode ser um reconhecimento do destino.”

Do diálogo com Paz e Pessoa, dos seus sublinhados na antologia mexicana que recebeu no ano da sua publicação, em 1962, Alejandra colheu “vestígios de existência, fragmentos de identidade”, e ao experimentar deitar-se no túmulo do outro, na profundidade que exalam as suas cinzas consteladas, dá um passo decisivo em relação a si mesma ("Medo de ser duas/ a caminho do espelho").

Diz-nos Pérez López que é possível, sobretudo lendo os seus diários, encontrar uma íntima filiação “tão próxima como autêntica” entre estes autores. Mas o investigador vai mais longe e identifica aqui os matizes essenciais do pensamento poético. Veja-se outro sublinhado de Pizarnik no prólogo de Paz: “E não obstante, a destruição do eu, pois é isso o que são os heterónimos, provoca uma fertilidade secreta. O verdadeiro deserto é o eu e não apenas porque nos encerra em nós mesmos, e assim nos condena a viver com um fantasma, mas porque sufoca tudo aquilo em que toca.” Esta consciência do eu como o obstáculo decisivo, não impede que Pizarnik se debata com ela, e, em certa medida, escolha deixar-se consumir, embrenhar-se no seu fantasma… “Tenho pensado: para quê desejar a fuga às minhas angústias? Aceitar a fatalidade em alguns seres. Eu nasci para sofrer. Isto é claro. Dói”.

Toda a dor é um excesso. A dor fareja o rastro do infinito, e Pizarnik fala dessa “mão que me arrasta/ para a minha outra margem”. “Filha do vento”, os seus versos são o que fica de uma cerimónia impura, uma “mutilação mágica” a que se entrega na sua cada vez mais sinistra e longa noite, sujeita à insónia. “Um adeus é a tua vida. Mas tu abraças-te/ como a serpente louca em movimento/ que só se encontra a si própria/ porque não há ninguém.”

Noutra das páginas do seu diário, citava Novalis: “Buscamos sempre o absoluto e não encontramos mais do que coisas.” Esta é a escrita de um corpo desfigurado, prometido ao vazio, que sente em cada hora a forma como o mundo a repudia: “e leva a vida/ a mendigar fervor”. Como vincava Paz naquele prólogo, em mais uma das frases que Alejandra sublinhou: “O poeta é a consciência da sua irrealidade histórica.” Daí que do próprio uso da língua fique clara a sua condição de estrangeiro. Esse uso é o seu passaporte. E, de algum modo, os próprios versos mostram um confronto com os seus limites. Nos diários, confessa: “Quero escrever contos, quero escrever romances, quero escrever em prosa. Mas não consigo narrar, não consigo detalhar nada porque nunca vi ninguém. Talvez se me obrigassem a ver, se me obrigassem a exprimir fielmente o que vejo. A poesia dispersa-me, desobriga-me a mim e ao mundo.”

Era-lhe difícil fazer o que está mais de acordo com o mundo. Não fazia outra coisa além de corrigir as palavras, transtornar as expressões, pesar o sentido como quem o vertesse entre chávenas à volta de uma mesa, servindo uma mistura fatal às suas bonecas. Pizarnik vivia a sua limitada deserção, trocando cartas noturnas com uns poucos amigos, traduzindo autores como Rimbaud, Artaud ou Michaux, aperfeiçoando esse “idiolecto cerrado, estrito, recorrente até à conjuração e o exorcismo” (Mercedes Roffe).

Hoje, à edição, não restam muitos objectos dignos de culto, obras amaldiçoadas, pedras que, estando ali, mudas, se afundam enquanto tudo o resto parece estático. A obra desta argentina “tão lida e imitada quanto mitificada”, filha de judeus que escaparam de uma cidade russa – que antes já havia sido polaca, e que se situa onde fica hoje a Ucrânia –, esta obra tinha merecido, entre nós, algumas incursões da parte de vários leitores que traduziam os seus próprios sublinhados, seduzidos pelas tantas despedidas de Pizarnik. Seduzidos pelas inversões, a brevidade, a depuração vertiginosa, elíptica, aquela “melodia destruída”, o gosto de ir marcando aquele pulso distante, esfriando… “explicar com palavras deste mundo/ que partiu de mim um barco levando-me”.

Na incapacidade de negociar os direitos da obra, esses leitores foram deixando à mostra esses sinais de assombração que nos dizem tanto sobre a vida da poesia, esse “acto de leitura ao mesmo tempo crítico e passional, que coloca o sujeito da leitura em risco” (Laura Erber). Algo que, de resto, foi fazendo justiça ao próprio diálogo de Pizarnik com os seus mortos. Erber explica como na sua escrita “há um modo de incorporação por eco em que ela vai esgarçando o texto alheio até o ponto de decepção”. Além dos nomes já referidos, os dos autores que foi traduzindo, entre a literatura francesa há ainda que referir Breton, Reverdy, Lautréamont. E entre os autores do seu próprio país, destaca-se Antonio Porchia. Tendo publicado um só livro, “Vozes”, este compõe-se de uma magistral reunião de cinzelados aforismos, versos de sabedoria abrupta, lidos com devoção por Alejandra, que aprendeu com eles que “a rebelião consiste em olhar para uma rosa/ até pulverizar os olhos”.

Agora, depois das muitas incursões corsárias, coube à Tinta da China reclamar o prémio de uma antologia mais representativa desta poeta capaz de, num verso, nos cativar com a “delicada urgência do orvalho”, para logo depois nos tirar o chão diante de uma impressão tão cruel que se nos pega e nos desarma de todas as vezes. Leia-se o poema “Infância”: “Hora em que a erva cresce/ na memória do cavalo./ O vento pronuncia discursos ingénuos/ em honra dos lilases,/ e alguém entra na morte/ com os olhos abertos/ como Alice no país do já visto.”

Ler Pizarnik é como vê-la de volta ao seu quarto, com os poemas ampliados, colados nas paredes, interrogando cada palavra, os sons, a sua necessidade, criando com os passos, de tanto andar às voltas, uma música capaz de alcançar o inferno.

Também de versos há quem se mate. Mas isso nada tem que ver com esses vícios para justificar as mais deploráveis existências. Para Pizarnik, ser escritora era já um plano que levaria à sua morte. Nos diários, surgem desenhos de revólveres com instruções sobre como utilizá-los, receituários sobre como combinar soníferos, barbitúricos e tranquilizantes para obter o efeito desejado, e até as coacções que fazia aos mais próximos para que, chegada a altura, a ajudassem a morrer. Ao longo da vida foi publicando excertos em revistas, e fê-lo demasiado consciente daquele que acabaria por ser o destino desses escritos, onde revela também alguns aspectos mesquinhos da vida literária, das suas rivalidades, e onde aborda as suas experiências sexuais, as diferentes máscaras que punha, as relações com homens e mulheres, dando a sensação de que sempre que arrastava alguém para a cama, ao mesmo tempo que ficava por cima estava também debaixo dela: “alejandra alejandra/ debaixo estou eu/ alejandra”.

Hoje, começa a haver algo de perverso no seu mito, que tal como tem acontecido com outros suicidas, atrai cada vez mais as moscas da adolescência, as quais se deliciam com estas figuras que parece que ficam retidas nesse gesto fatal e romântico de quem morre “explicando a sua morte”, oferecendo o seu corpo quente para que o visitem “sábios animais nostálgicos”. Investigando um pouco mais, vai-se tornando claro o quanto há de perturbação e desastre neste jogo, em brincar-se com a loucura, convidando a depressão, até acabar como outra das suas presas. “Eu escondo pregos/ para escarnecer dos meus sonhos doentes.// Lá fora há sol/ eu visto-me de cinzas.”

Hoje, a tão cuidada e breve obra de Pizarnik, com as suas elaboradas inconfidências, tão comoventes algumas, os seus versos cheios de referências viscerais, tudo isso arrisca perder-se, ficando submerso num zumbido que atordoa os sentidos. “A cada dia os meus poemas ficam mais curtos: pequenos fogos para aquele que se perdeu numa terra estranha”, escreveu ela num dos seus ensaios críticos.

Era crucial, por isso, que esta antologia nos chegasse acompanhada de um aparato crítico que pudesse dar-nos uma imagem mais complexa de uma poeta cuja herança chega a ser demasiado tentadora para cata-ventos e epígonos. Com a sua repisada candura, Pizarnik extrai um veneno só seu de palavras ingénuas, que se deixam levar sem saber o que as espera.

Infelizmente, há algo que trai esta obra na apresentação e selecção que nos é proposta por Ana Becciú (a principal responsável pela edição das obras de Pizarnik) e por Patricio Ferrari. O brevíssimo prefácio, não só não é empolgante como tem a frieza das anotações clínicas, o que combina com a selecção, que, organizada cronologicamente, não nos oferece matéria para mais do que um exame geral. A porta do consultório fica entreaberta, e dá para deitarmos uma olhada, apanhando-a de costas, sendo auscultada, com a bata meio despida.

Para uma antologia que é “a primeira desta envergadura em Portugal” seria de esperar algo mais empenhado, que denunciasse menos o cansaço do que se fez já demasiadas vezes. Nada pior do que ver a paixão esbater-se e o obstetra que ajudou a dar uma obra à luz a repetir os mesmos gestos com o ânimo de um médico legista. Deste modo, tentando defender a representatividade, perde-se a cadência interior, a consistência interna dos livros, as repetições que fazem vingar a sua semântica, o ritmo sussurrado, encantatório, e os poemas surgem-nos como partes amputadas, textos perdidos.

“Somos gente complicada ou, mais exactamente, labiríntica. Apesar disto, não sou confusa e sei perfeitamente o que quero e o que não quero, o que, às vezes, é uma desgraça”, escreveu Pizarnik. É pena que este passo para uma edição mais completa da sua obra tenha sido dado sem especial convicção, fazendo dele, por isso, um livro que apenas há-de encantar quem só agora, só assim, fizer a descoberta desta “mendiga voz”, com toda a sua ousadia. Mas como nos diz esse poema: “É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.”

E sendo esta uma poeta de quem não acabamos nunca de nos despedir, fica aqui o adeus de Julio Cortázar, que a tentou charmar a razão perto do fim, chamou-a de burra com intenso afecto, enquanto lhe pedia por tudo que não se matasse: “Se é certo que o Hades não existe,/ é ali certamente que hás-de estar,/ último hotel, último sonho,/ passageira obstinada da ausência./ Sem bagagem nem papéis,/ oferecendo como óbolo um caderno/ ou um lápis de cor./ – Aceita-os, barqueiro: ninguém pagou mais caro/ o bilhete aos Grandes Transparentes,/ ao jardim onde Alice a esperava.”