Albert Uderzo. Os irredutíveis também dizem adeus

Albert Uderzo. Os irredutíveis também dizem adeus


“Um monstro sagrado do cartoon” e o pai remanescente do universo Astérix, Albert Uderzo morreu ontem, aos 92 anos.


Povoou infâncias de cor pelo mundo fora, arrancou sorrisos e gargalhadas a graúdos e teve o condão de, através das suas ilustrações, expressar também a importância da união e da resistência. Por Toutatis, por nós próprios ou por quem quisermos. Albert Uderzo, um dos criadores da coleção Astérix, morreu na madrugada entre segunda e terça-feira, aos 92 anos, da forma mais suave que um ser humano pode almejar: em casa, durante o sono, rodeado da família. Urdezo partiu em Neuilly sur Seine, em França, confirmou ao mundo ontem de manhã a Editions Albert René, a editora oficial da coleção Astérix, adiantando que foi vítima de uma paragem cardíaca. “Foi com grande tristeza que a ASA e a LeYa receberam esta manhã, por parte das Editions Albert René, a informação oficial do falecimento, na noite de ontem, do Sr. Albert Uderzo, aos 92 anos”, dizia ontem a editora portuguesa em comunicado. “A LeYa e a ASA orgulham-se de ser a editora, em Portugal, dos livros da série Astérix, cuja mais recente novidade, ‘A Filha de Vercingétorix’, foi publicada mundialmente em outubro de 2019”, notavam as chancelas. Esta última obra já não contava com a sua assinatura, mas é filha do universo criado por um ilustrador genial, cujo caminho começou a ser inscrito a 25 de abril de 1927, data em que Uderzo nasceu em Fismes, uma localidade a cerca de 140 quilómetros de Paris.

Filho de imigrantes italianos – o pai era carpinteiro – só se naturalizou francês em 1934. E, em criança, sofreu pela sua ascendência, motivo pelo qual, para que a sua aculturação fosse mas fácil, o pai ter deixado que lhe caísse o ‘o’ de Alberto, preferindo um mais francês Albert – até porque, à época, a imagem do povo italiano mais facilmente lhe fecharia do que abrira portas. Aos dois anos, a família muda-se para Clichy-sous-Bois, nos arredores de Paris.

Desde cedo que os pais e educadores lhe reconheceram a tendência para as artes. Em “Uderzo se Raconte” (2008), em que conta a sua vida pelas suas próprias palavras, Albert recorda que a primeira vez que à sua volta notaram que tinha jeito para a ilustração foi logo no jardim de infância – e também foi nessa altura que, ao brincar com uma caixa de lápis de cor, a família percebeu que era daltónico. A ‘condição’ não afetou o seu caminho profissional pelas artes gráficas, tendo publicado os primeiros desenhos logo nos anos 40, no jornal OK, uma publicação juvenil. Na década seguinte, conhece o escritor e argumentista René Goscinny, que era apenas um ano mais velho e que tinha um passado muito semelhante, visto ser também filho de emigrantes. Em 1959, apareceria a novíssima revista Pilote, trazendo nas suas páginas o fruto da colaboração entre ambos: Astérix. Dois anos depois, é publicado o primeiro álbum da coleção, “Astérix, o Gaulês”. A popularidade dos personagens foi imediata e na década de 60 a fama era tal que na corrida ao espaço o primeiro satélite francês, lançado em 1965, recebeu o nome de Astérix-1.

Durante seis décadas, a irredutível – adjetivo que quase parece ter sido criado para a definir – aldeia dos gauleses sobreviveu com argúcia, humor e uma inigualável capacidade de união. A história, onde estes Golias vencem sempre o gigante romano, vendeu ao longo dos tempos 375 milhões de álbuns, calculou o Le Monde, e está traduzida em mais de 107 línguas e 23 dialetos, nos quais se inclui o mirandês. René Goscinny morreu precocemente em 1977, aos 51 anos, e o último álbum em que os dois colaboraram, “Astérix entre os Belgas”, foi publicado em 1979. Após a morte de Goscinny, Uderzo trouxe para si a tarefa de escrever também as histórias, e assim se manteve até 2011, ano em que, aos 84 anos, decidiu entregar o legado. O argumentista Jean-Yves Ferri e o ilustrador Didier Conrad passaram, então, a estar encarregues da coleção. Numa entrevista concedida em 2009 ao Jornal de Notícias, Urdezo recordou alguns dos momentos mais marcantes do seu percurso, escolhendo destacar o facto de ter conhecido o seu amigo-irmão Gosciny e, mais tarde, a altura em que se aperceberam de que tinham criado um fenómeno, ao ouvir um homem na rua chamar ao seu cão… Astérix.

O reduto dos gauleses tornou-se efetivamente numa lenda que viveu para lá dos quadradinhos, passando também por várias adaptações cinematográficas: primeiro foram as animadas, com “Astérix, o Gaulês”, ainda nos anos sessenta. “Astérix e Obélix contra César” (1999, dirigido por Claude Zidi) foi a primeira adaptação em imagem real da história e trazia Gérard Depardieu no papel da personagem preferida de Albert Uderzo: Obélix. O autor não fazia segredo da preferência, diz o Le Monde, lembrando que a personagem foi criada pelo próprio Urdezo, ainda sem a parceria com Goscinny. Depois, o jornal francês sugere um motivo mais pessoal: é que Obélix seria, de certa forma, um pouco o reflexo do seu criador que, com uma “força da natureza” fora do comum, já tinha vencido uma leucemia e que, até aos seus últimos anos, mantinha a aparência de um homem “invencível, inabalável”.

As forças de expressão utilizadas ontem para o definir fazem efetivamente eco dessa imagem. “Gigante de talento monstruoso”, “um monumento em todos os sentidos da palavra”, “um monstro sagrado do cartoon”, assim o categorizavam os principais jornais franceses nos obituários que lhe eram dedicados.

Na mesma entrevista ao jornal português, Albert dizia com humor que ele próprio tinha mudado, mas que o mundo continuava a gostar da sua criação e que, devido a essa constância, os seus personagens também se mantinham quase iguais: “Quanto ao mundo, não me parece que tenha mudado assim tanto e a prova é que os álbuns que escrevi com o meu amigo René Goscinny continuam a divertir muitos! Astérix não mudou!”. Mesmo tendo ficado agora órfão.