Tribunais e estado de emergência


Os advogados são absolutamente essenciais para a defesa do Estado de direito e nem em estado de emergência a sua intervenção pode ser afastada, sob pena de se comprometer gravemente o funcionamento dos tribunais, em violação da Constituição e da lei.


O Presidente da República, através do decreto 14-A/2020, de 14 de Março, decretou o estado de emergência, que veio a ser concretizado pelo Governo através do decreto 2-A/2020, de 20 de Março. Trata-se de uma medida que há muito deveria ter sido decretada perante a emergência global de saúde pública que estamos a atravessar. Efectivamente, perante a liberdade de deslocação dos cidadãos dentro do território nacional e o direito constitucional de resistência a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, é evidente que qualquer medida de isolamento de populações e proibição de deslocações poderia vir a ser considerada inconstitucional. Da mesma forma, o facto de a Constituição apenas prever a restrição da liberdade das pessoas em caso de doença mental, nada referindo em relação às situações de doença contagiosa ou quarentena forçada, impedia a aplicação coerciva desse tipo de medidas. Por isso, a única forma de adoptar medidas desta natureza pressupõe a decretação do estado de emergência.

O estado de emergência tem, no entanto, limites legais, uma vez que, nos termos do art.o 19.o, n.o 7 da Constituição, o mesmo “só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”. Neste âmbito encontram-se, naturalmente, os tribunais, cuja actuação pode vir a ser extremamente necessária em caso de violação dos direitos das pessoas durante o estado de emergência.

Ora, o próprio regime jurídico do estado de emergência (lei 44/86, de 30 de Setembro) prevê a intervenção dos tribunais durante esse período. Efectivamente, o art.o 6.o dessa lei refere que “na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência, os cidadãos mantêm, na sua plenitude, o direito de acesso aos tribunais, de acordo com a lei geral, para defesa dos seus direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais”. E o art.o 2.o, n.o 2, a) da mesma lei estabelece expressamente que “a fixação de residência ou detenção de pessoas com fundamento em violação das normas de segurança em vigor será sempre comunicada ao juiz de instrução competente, no prazo máximo de 24 horas após a ocorrência, assegurando-se designadamente o direito de habeas corpus”.

Apesar disso, lamentavelmente, o decreto do Presidente da República 14-A/2020, de 14 de Março, não faz qualquer referência à actuação dos tribunais durante este período, limitando-se a prever no seu art.o 5.o, n.o 4, que “nos termos da lei, a Procuradoria-Geral da República e a Provedoria de Justiça mantêm-se em sessão permanente”, o que não é manifestamente suficiente para a tutela dos cidadãos lesados.

Apenas o decreto do Governo 2-A/2020, de 20 de Março, faz referência no seu art.o 22.o a que, no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais, “o membro do Governo responsável pela área da justiça articula com os Conselhos Superiores e com a Procuradoria-Geral da República a adoção das providências adequadas à efetivação do acesso ao direito e aos tribunais, para salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão”. Não se prevê, no entanto, a intervenção da Ordem dos Advogados neste processo, quando essa intervenção é absolutamente necessária para garantir que os lesados ou ameaçados de lesão tenham um advogado que possa defendê-los. A desconsideração dos advogados ainda é mais clara pelo facto de o diploma não incluir os serviços dos advogados entre aqueles que não devem ser suspensos, nos termos do art.o 9.o, n.o 1 e anexo ii desse decreto, apesar de incluir nesse âmbito os “serviços bancários, financeiros ou de seguros”.

Os advogados são absolutamente essenciais para a defesa do Estado de direito e nem em estado de emergência a sua intervenção pode ser afastada, sob pena de se comprometer gravemente o funcionamento dos tribunais, em violação da Constituição e da lei. É, por isso, imperioso que esta situação seja rapidamente alterada.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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