Michel Schneider. “Ei-la finalmente, a coisa admirável!”

Michel Schneider. “Ei-la finalmente, a coisa admirável!”


Face ao desmoronamento dos nossos planos, e à medida que das vertigens do espanto apenas fica o resíduo desolador do confinamento, as mesmas paredes, os hábitos forçados e sem saída, nada como uma biblioteca para nos guiar na ambiguidade deste tempo, com os seus aquedutos subterrâneos, a sua opulência discreta que cava trinta ou quarenta palmos mais…


“MORTES IMAGINÁRIAS”

De Michel Schneider

Ed. Cotovia

Esta é a primeira sugestão, um livro que nos atira para a cabeceira de moribundos ferozes ou geniais, humorados e irónicos, capazes de se ultrapassarem a si mesmos para aproveitarem esse espectáculo em que todos somos chamados a tomar parte, como num teatro que, em todas as épocas, enfrenta crises e renovações, virando-se para Deus ou para o vazio, numa derradeira homenagem à própria vida. Assim, eis um livro sobre todos os outros, um que pelas suas páginas por vezes tão difíceis de virar, nos põe perante o esquecimento como um cenário marítimo em que grandes navios se afundam, num trabalho de dissecação de espantosos corpos, palavras que chegam ao fim depois de tanto se terem buscado, apreendido e finalmente soltado, uma aturada investigação que parece tecida de ecos, navegando a morte sobre o fio de arame do último fôlego… Este livro que entre todos escolho, tira a sua força desse génio de se deixar inspirar, saber estar com tantos escritores e cruzar os testemunhos sobre o derradeiro ponto final. “Mortes Imaginárias”, de Michel Schneider foi editado neste país por André Fernandes Jorge, e a forma como passou desapercebido é elucidativa o bastante do grau de convicção que é preciso para continuar a perder dinheiro e a investir todos os cuidados possibilitando que uns poucos leitores tenham um encontro que os impressionará decisivamente. Talvez a mais justa homenagem que possa fazer-se a um editor será deixar as coisas gerais, abandonar o coro que se afina nas despedidas, e apontar um exemplo tão claro da diferença que a atenção de um homem quis fazer. A tradução da poeta Bénédicte Houart é um prodígio, e o texto tem a moldura perfeita, letra generosa, a gramagem do papel fazendo que nos dedos da memória pesem estas folhas; é raro ver um livro de ensaios tratado com esta nobreza. Triste e seis retratos de escritores, todos a uma luz que à vez sabe obsequiá-los no seu ímpeto de clássicos e também os íntima, numa história da literatura que a todos nos diz respeito. Porque como lembrou o psicanalista francês numa entrevista, “a morte é o acontecimento por excelência, mas ela não acontece sem ser dita”. Editado em 2011, este livro passou praticamente despercebido. Não há editor com jeito para o negócio que não saiba que ter a morte logo ali no título não vai cair bem num tempo que tem dado a vida para não ter de falar no assunto. Mas perguntem-me o que há de tão extraordinário neste livro. Parece que os ouvimos, é a magnificente qualidade de uma prosa de um acerto e eficácia poéticos, que baixa alguns graus a temperatura na sala e nos faz ver a própria respiração misturando-se às deles, essa circulação de “palavras nocturnas, ecos de silêncio, sílabas fatídicas, últimas palavras, coração derradeiro”. Uma imaginação que nos convence de que essa é a que melhor pode aplicar-se à escrita de ensaios, a capacidade de integrar, gerar essa profunda convivência a partir dos pontos onde as mais talentosas solidões se cruzam. “Escrever significa colocar-se na perspectiva da morte em relação à sua própria vida e à dos outros. Como todos os autênticos escritores, também Proust escrevia na sombra delicada dos grandes autores mortos. ‘O que me garantirá que vi bem’, observa ele, ‘não é o elogio dos vivos, mas a afinidade com os mortos. Basta descobrir determinada coisa que dissemos num livro de Diderot que não conhecíamos para ficarmos certos da sua verdade […]. Assim, o que reconforta um escritor, não é o juízo favorável dos vivos, mas a aprovação de um morto’.”