À beirinha da Estrela, na Rua Possidónio Cachapa, os velhos acumulavam-se como num armazém à espera da morte. Podia o Governo orgulhar-se da sua obra, mas a realidade não era o arco-íris que vinha pintado nos jornais. Cento e noventa e sete habitantes, quase todos à volta dos 80 anos, e um mais velho, com 92. Albergue dos Inválidos do Trabalho. Gente solitária, sem família, gente sem ter quem a amparasse, quem a recolhesse. O ruído macabro da solidão humana.
Possidónio da Silva lançara mãos à obra 86 anos antes. À custa de esmolas pedidas porta a porta. Tanto teimou que recebeu o patrocínio abendiçoado da Casa Real de Palmela. O edifício ergueu-se. Os anos passaram em catadupa. Não havia à vista falta de zelo, mas os estragos que o tempo provoca eram evidentes e mil sócios a pagarem 2$50 de quotas não dava para milagres. Candidatos faziam fila para poderem ser aceites.
Quem lá morava dava-se por satisfeito. Tal como o afirmava o 12, um reformado pescador da Ericeira: “Boa comidinha, caminha asseada, que posso querer mais?”
Talvez deixarem de tratá-lo por um número fosse um progresso.
A administração gritava as suas queixas nas páginas dos jornais: “São 1500 contos gastos só com a alimentação!” Malhas que o império tece. O 12 debulhava-se em tarefas para merecer a côdea do casqueiro: consertava calçado, fazia serviços de carpintaria, servia de serralheiro e também construía os caixões que os levavam a todos para a cova, a começar por ele.
A direção continuava a reclamar enquanto não os via partir, silenciosamente, para o Cemitério dos Prazeres: “Em quatro dias comem um porco inteiro! O ano passado foram 27 porcos ao todo. Mais 100 quilos de batatas, 20 de massa, 20 de grão ou feijão para a sopa. Lá estão 1500$00 por dia”. Os velhotes suspiravam: “O que é preciso é não ter fome!” Ao domingo havia direito à pinga: um copinho de vinho bem medido por cabeça. Os que tinham uns tostões nos bolsos surrados bebiam outro copinho à segunda, num tasco das redondezas. Afinal, a tarde era livre. E eles gozavam a liberdade…