Solidariedade em tempos  de covid-19.  Os bons vizinhos

Solidariedade em tempos de covid-19. Os bons vizinhos


Dezenas de papéis nas ruas e uma mensagem: os vizinhos ajudam quem não pode sair de casa. A ideia surgiu em Itália, saltou rapidamente para Portugal e, de norte a sul, há já milhares de voluntários.


Doentes oncológicos, pessoas com problemas respiratórios ou com mais de 70 anos devem estar em casa nesta altura. Mas ficar confinado a quatro paredes é também sinónimo de dependência de terceiros – para ir comprar comida ou medicamentos – e há quem não tenha ninguém. A boa notícia é que na última semana cresceu uma onda de solidariedade que já se espalhou a nível nacional. E os vizinhos ganharam agora uma nova dimensão: a da responsabilidade social.

Maria Esteves começou por colar cartazes na rua onde mora, em Miraflores. “Eu sou a Maria e estou aqui para o ajudar! Quaisquer compras que necessite de fazer no supermercado ou na farmácia, eu faço por si. Não saia de casa e evite situações de risco. Vamos ultrapassar isto, todos juntos”, lê-se no cartaz. Na última sexta-feira, a jovem de 21 anos levou compras a uma senhora de 92. “A senhora vive com a filha, que tem 64 anos e uma doença oncológica, não podem mesmo sair de casa”. “E nessa altura senti que as pessoas precisam mesmo de nós e vi na senhora um olhar de agradecimento”, acrescentou. Os contactos são feitos por pessoas que veem os papéis espalhados ou publicações nas redes sociais, ou através de terceiros.

Esta jovem faz parte da plataforma Vizinho Amigo, criada há uma semana através das redes sociais e que conta já com cerca de cinco mil voluntários por todo o país. A ideia nasceu em Itália, quando os vizinhos começaram a colar cartazes para ajudar os grupos de risco, e saltou rapidamente para Portugal. Nas ruas multiplicam-se os papéis e, disse ao i Martim Ferreira, um dos responsáveis pela Vizinho Amigo, “há voluntários que ajudam quatro, cinco pessoas por dia”. A plataforma funciona de forma simples: o voluntário inscreve-se através de um formulário online, tem de assinalar se faz parte de um grupo de risco – se fizer, fica excluído –, depois recebe um ficheiro com o cartaz para imprimir e espera que receba contactos. O objetivo é facilitar a logística de fazer um cartaz e organizar os voluntários de forma a conseguir ajudar o maior número de pessoas, que a ajuda também seja contínua e que quem precisa saiba que tem ali alguém disponível. “Nós enviamos o modelo do cartaz para imprimir mas, por exemplo, uma das voluntárias não tinha impressora e desenhou à mão”, explicou Martim Ferreira.

Os voluntários têm de usar todas as medidas de proteção na hora da entrega, como luvas e máscara. “Não entramos em casa das pessoas. Às vezes deixamos à porta do prédio ou subimos até à entrada de casa das pessoas, depende da mobilidade”, explicou Maria Esteves, que também já foi fazer compras para levar a casa de uma mãe jovem que tem duas filhas, uma delas com asma. Neste caso, Maria entregou as compras à porta do prédio.

No entanto, há também a parte da desconfiança. De Miraflores para Benfica, Maria Soares conta que, apesar de receber contactos para fazer as compras, “as pessoas são também mais desconfiadas”. “Veem os cartazes, mas não sabem quem é, porque só está lá um nome e não é por parte da junta nem da câmara. Então acho que algumas pessoas não ligam também por medo”, acrescentou a jovem. Além disso, muitos pensam que se trata de um serviço pago. Não é, e cada voluntário faz a gestão que acha mais adequada. Maria Soares, por exemplo, recebe os contactos, tenta fazer compras para mais do que uma casa, adianta o dinheiro e depois entrega e recebe o valor daquilo que gastou. Do vizinho de 74 anos à senhora de 80 que tem asma, Maria Soares conta que as preocupações são as mesmas: “Perguntam sempre se vamos de máscara e de luvas”.

A Vizinho Amigo fica com o registo de todas as entregas na sua base de dados e já tem também parcerias com algumas juntas de freguesia – em Lisboa, Tavira ou Beja, por exemplo. “Em Tavira, a autarquia dá formação aos voluntários”, explicou Martim Ferreira, acrescentando que o trabalho com estas entidades passa por assinalar os casos que precisam de ajuda, até porque “as freguesias têm noção de quem são as pessoas de risco”. No fundo, há partilha – as freguesias dizem quem precisa de comida ou medicamentos, os voluntários compram e também ajudam a assinalar novos casos.

Uma das juntas de freguesia que já têm parceria com o movimento de voluntariado é a de Alvalade, na capital. Ao i, fonte da autarquia referiu que na última semana entrou em contacto com 187 idosos, referenciados no projeto Radar – um plano de intervenção comunitária da cidade de Lisboa –, “dos quais 12 foram novos referenciados, reencaminhados por outros meios ou canais de apoio social”. Além disso, “28 pessoas, num total de 13 famílias carenciadas, estão a receber refeições elaboradas nas cantinas escolares que são entregues por associações ou por voluntários da junta”.

Uma ajuda também para a economia As escolas fecharam e, por isso, a Junta de Freguesia de Benfica, em Lisboa, decidiu colocar os funcionários das escolas em projetos de voluntariado. Agora, os trabalhadores levam alimentos e medicamentos a quem não pode sair de casa e ainda ajudam os vendedores do mercado da freguesia –, que continua aberto, mas recebe sobretudo encomendas. Ricardo Morais, de uma das escolas de Benfica, passa agora os dias a distribuir as encomendas do mercado. “As pessoas que precisam ligam para o mercado e nós organizamos as entregas com os vendedores de cada banca. É uma forma de ajudar a dinamizar a economia deste espaço, de ajudar quem não pode sair e de manter toda a gente em casa”, disse ao i Ricardo Morais. Neste caso, as compras são levadas a todas as pessoas, mesmo às que não pertencem a qualquer grupo de risco: basta ligar para o Mercado de Benfica, pedir carne, peixe, legumes ou fruta, e os produtos vão ter a casa.

Na última quarta-feira, o projeto para reforçar o serviço de entregas começou com 12 encomendas. Este sábado entregaram 91. “Neste momento, já há quatro carros para fazer entregas e há muito mais organização, porque há cada vez mais encomendas. E isso é muito bom, quanto menos pessoas saírem de casa, melhor”, explicou Ricardo Morais.

Além de entregarem bens essenciais, os funcionários desta junta aproveitam para fazer outro trabalho que é tão necessário nesta altura: tentam perceber quais as pessoas que precisam de ajuda para que possam ser sinalizadas para a ação social.

Os projetos para ajudar quem não pode sair de casa multiplicam-se e, de norte a sul, as juntas de freguesias espalham a mensagem pelos que precisam. Os últimos estudos feitos pela GNR a nível nacional atribuem ao distrito de Vila Real o número mais elevado de idosos sozinhos ou isolados. Por isso, os gabinetes de ação social das autarquias do distrito e também a GNR fazem visitas domiciliárias para garantir a entrega de alimentos ou medicamentos. Mais a sul, em Faro, o município está a promover uma campanha, em conjunto com as empresas de condomínio, para que os vizinhos se ajudem uns aos outros.

Reinventar-se em tempos de pandemia A assistência à família é um dos motivos para poder sair de casa, de acordo com as medidas anunciadas pelo Governo para conter a propagação do novo coronavírus. Para os voluntários da Refood, “o conceito de família é mais alargado”, disse ao i Hunter Hadler, fundador da Refood em Portugal. “Família são todas as pessoas que nós ajudamos”, acrescentou. Aliás, combater o desperdício e ajudar famílias carenciadas são os motores deste movimento, que apoia mais de 2500 pessoas. Mas agora, com pastelarias e restaurantes a reduzir a produtividade – estes estabelecimentos só podem vender takeway –, o desperdício é muito menor e os voluntários têm menos comida para distribuir. “Ainda há algumas coisas nos supermercados, mas muito pouco, e há muito pouco desperdício”, disse Hunter Hadler, acrescentando que os 60 núcleos espalhados pelo país “já estão a verificar com as câmaras municipais ou com as juntas de freguesia se os seus beneficiários têm outra solução”. Além disso, a Refood tem parceria com o Banco Alimentar Contra a Fome e com a Cáritas, o que facilita a distribuição de comida neste momento.

“Os núcleos estão a reinventar-se”, explicou Hunter Hadler. Se antes iam quatro pessoas num carro para ir buscar comida aos vários estabelecimentos, agora só pode ir uma pessoa. E existem também outros constrangimentos: há voluntários que fazem parte dos grupos de risco – ou são mais velhos ou têm problemas de saúde – e, naturalmente, não podem ajudar. “Nesta altura, é muito importante o bem-estar das pessoas que ajudamos, mas também dos nossos voluntários”, disse o fundador da Refood.

Mesmo com menos comida para distribuir e com menos voluntários, a Refood garante continuar a trabalhar para que nada falte às famílias que tem ajudado – seja através das autarquias ou das várias parcerias. No fim, explicou Hunter, importa arranjar uma solução: “Sabe o que dizia Darwin? Não é o mais forte que sobrevive nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”.