As ressonâncias do que rói as unhas da incerteza

As ressonâncias do que rói as unhas da incerteza


Por estes dias, das páginas dos livros de História ou das história alheadas daquilo que vivemos, os personagens deitam o seu olhar inquiridor, curiosos ou comovidos, alguns tendo vivido terrores piores, alguns fazendo-nos avisos, outros rindo-se da nossa sorte, enquanto temos de ficar quietos, escondidos, enquanto o vírus, lá fora, faz as rondas, e cheira…


Talvez pudéssemos contar o que nos está a acontecer como se tivessem já passado alguns anos, mesmo décadas. Distanciarmo-nos friamente deste dias, e alinhar os eventos desta história verídica que não deixa que sobre ela se forme outra perspectiva que não a de uma certa incredulidade. Estamos a chegar perto de finais de Março, em breve estará aí o mês de Abril e com ele, com a mais estranha das Primaveras em muitos anos, os versos iniciais de "A Terra Devastada”, de T.S. Eliot irão adquirir uma profética razão: “Abril é o mês mais cruel, gera/ Lilases da terra morta, mistura/ A memória e o desejo, agita/ Raízes dormentes com chuva da Primavera./ O Inverno aconchegou-nos, cobriu/ A terra com o esquecimento da neve”… (Tradução de Gualter Cunha). Por estes dias, o que parecia certo deixou de o ser. Ninguém consegue saber que sentimento lhe inspira o futuro. Amanhã seria um dia igual a tantos, com a cidade agitando-se entre o movimento das pessoas indo para o trabalho, apanhando o eléctrico, o autocarro, metidas em intermináveis filas, dentro do carro, buzinando, diluindo-se em tarefas árduas, estaríamos distraídos, mergulhados “nessa grande mentira decente do trabalho, com esses pequenos gestos em que se concentra uma verdade muda, decorosa, na qual toda a epopeia da nossa existência se resume a uma pantomima diligente” (Éric Vuillard, A Ordem do Dia). Mas agora nem isso temos. As manhãs despertam e são mais os pássaros, que ganharam a cidade, enquanto o ruído se aligeira. Chega um livro pelo correio, o mais recente número da revista de poesia e tradução "DiVersos", onde pode ler-se um breve poema estranhamente apropriado ao momento: “Descrever a peste/ da alma pela língua,/ sua intérprete. Que isso/ aconteça não está/ no poder humano.” Quando o autor, Carlos Sousa de Almeida, escreveu este fragmento, não poderia supor a estranha ressonância que viria adquirir na altura da sua publicação. São os acasos que, no limite, decidem as nossas vidas. Vamos imaginar que tudo isto é uma história feita de histórias que agora ganham outros sentidos, oferecem-nos os seus avisos e um estranho conforto. Podemos tentar escrever ficções curtas, do tamanho de suspiros, para obrigar estes dias a confessarem o melhor e o pior, o fascínio diante de uma hora em que tudo parece incerto. Há já antecedentes que nos dizem que isso pode ser imensamente produtivo para os poetas. Entre meados de 1592 e o final de 1594, nos dias em que a peste assolava a Inglaterra, os teatros londrinos foram encerrados, e houve várias companhias que acabaram por falir. Shakespeare ficou confinado à sua residência, e não deu o tempo por perdido. Escreveu as peças “Vênus e Adonis”, “O rapto de Lucrécia” e o “Rei Lear”, e conclui o volume dos seus célebres sonetos. Não era certo que as suas peças viessem a ser encenadas, e o bardo concentrou as suas forças em arrebatar não o público que se acotovelasse na plateia, mas esse em pose displicente, que se debruçava sobre os seus versos desafiando-os a provocarem algum sobressalto. As duas primeiras peças deixaram-se desviar da acção, e Shakespeare quis provar o vigor da sua lira, mostrar que podia provocar uma hipnose no leitor silencioso e que julgava o teatro como algo de menor, uma forma de criação que não tinha muito a ensinar à literatura. Quanto aos sonetos, só em 1606 seriam publicados, e, por esses dias, apenas circulavam manuscritos entre os amigos de Shakespeare. Aqui fica um, o XIV, em tradução de Ivo Barroso, e que também salta todos estes séculos para se pôr diante de nós para nos fazer sentir mais fundo o que sempre soubemos.

Dos astros não retiro entendimento

Embora eu tenha cá de astronomia,

Mas não para prever a sorte, o intento

Das estações, ou fome, epidemia;

Nem sei dizer o que será do instante,

Prever a alguém quer chuva, ou vento, ou raio;

Se tudo há-de sorrir ao governante

Segundo as predições que aos céus extraio.

Dos teus olhos provêm meus atributos

E, astros constantes, leio ali tal arte:

“Que a verdade e a beleza darão frutos

Se em ti deixas de tanto reservar-te”;

Ou um vaticínio sobre ti revelo:

“Teu fim põe termo ao verdadeiro e ao belo.”