E se um dia acordássemos proibidos de sair à rua? E se nas televisões de todo o mundo aparecessem governantes com discursos a equipararem o combate à disseminação de um novo vírus, um vírus que causa na maioria dos casos sintomas semelhantes aos de uma vulgar gripe, a uma III Guerra Mundial? E se, como se isso não bastasse, não houvesse no planeta governante ou cientista capaz de nos dar certezas sobre o dia em que a vida poderia voltar ao normal, sobre o dia em que liberdades básicas há décadas garantidas deixariam de estar suspensas?
A diferença entre um filme de ficção científica ou um romance distópico e a realidade é que a esta retirámos já há dias o “e se”. Esse “e se” em que a performer e criadora Raquel André tem andado a pensar por estes dias. “Tenho estado muito atenta às notícias, temos todos, e parece que estou a ver o ‘Se Uma Janela se Abrisse’, do Tiago Rodrigues”, diretor do Teatro Nacional D. Maria II. “Estamos todos neste ‘e se…’, e o ‘e se…’, esse levantar possibilidades, é o princípio do teatro, de qualquer ato artístico. Tenho pensado muito nisto: em como os artistas podem ser visionários, no sentido em que já criámos estas hipóteses, mas sempre num lugar abstrato e subjetivo, sempre ponderando como é que iríamos lidar com isso. De repente está a acontecer”.
Foi só há nove dias que Raquel André lançou no Facebook uma ideia que se poderia ter perdido entre feeds: com os espaços fechados, um festival de artes em streaming. Tinha acabado de ter as datas para a apresentação do seu espetáculo Coleção de Amantes no Porto canceladas. Nesse dia, os estragos imediatos da pandemia do vírus que se transformou nas últimas semanas no mais temível inimigo da espécie humana pareciam não ir ainda no caso português muito além de uns teatros e museus encerrados por umas semanas e de uns quantos concertos adiados. Para alguns, para muitos artistas, na verdade, era o dia em que a vida começava a abrandar para pouco depois ter parado por completo.
Esse dia, que parece ter-se passado noutra vida mas foi ainda na quarta-feira da semana passada, foi o dia em que foram anunciados testes positivos entre doentes internados com pneumonia no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Com televisões, jornais, redes inundados pela tragédia que já se vivia em Itália, foi esse um dos primeiros sinais de que a vida poderia mudar em breve. E mudou de forma tão fulminante que nove dias depois é já quase difícil reconstituir a sucessão de acontecimentos que nos trouxe até aqui: fechados, os que temos o privilégio de poder fazê-lo, nas nossas casas, à procura da normalidade possível.
Enquanto a vida mudou sem que mal nos apercebêssemos dos degraus escalados, o apelo de Raquel André deu origem a um movimento que ganhou vida própria, e que foi ganhando mais ainda à medida que as medidas de combate à propagação do vírus foram assumindo contornos mais drásticos. Nos dias seguintes, Raquel André regressava à sua página com o anúncio de que o apelo tinha dado frutos, anunciando um festival. Quarentena, chamou-lhe, já com uma equipa de outras três pessoas a apoiarem-na na produção: Afonso Molinar, Daniel Pinheiro e Raimundo Cosme. Nunca antes tinham trabalhado juntos, mas é juntos que nos trazem, a partir das 9h40 desta sexta-feira uma maratona de intervenções artísticas em streaming das mais variadas áreas que, com a apresentação de 41 propostas, se estende até que termine o dia.
Entre Portugal e o Brasil, entretanto em alarme com a disseminação do vírus, são 41 os projetos apresentados, a solo, em dupla ou em coletivo, por artistas das mais variadas áreas, e não só: logo pela manhã, o segundo momento do Festival Quarentena faz-se com uma sessão de astrologia, “para vermos como estão os astros” neste momento difícil. De resto, há teatro (adaptações de excertos de vários dos espetáculos que foram por estes dias cancelados), performances, dança, concertos, uma sessão de karaoke, leituras de poesia, intervenções de artistas visuais (que os próprios organizadores do festival estão curiosos para perceber como se materializam neste formato), leituras de manifestos, de um diário da quarentena.
Com a evolução das circunstâncias, o Festival Quarentena deixou de ser apenas um espaço para os artistas fazerem o que de repente deixaram de poder fazer nos espaços convencionais, perante o seu público, transformou-se ele próprio num manifesto pela resistência.
“Não sou médica, não posso inventar uma vacina, portanto acho que agora tenho de ir buscar as ferramentas que tenho ainda com mais força, produzindo para conseguir superar este momento. Quando falo em resistir tem a ver com isso. Com usar a ferramenta que mais me serve para lidar com este momento. Se formos ver, o que muita gente neste momento está a fazer é a ver filmes ou a ler livros, não é? Falo em resistência no sentido de como é que nós, artistas, conseguimos continuar a criar, a pensar sobre isto, a resistir a isto. Como é que continuamos a dançar sobre este vírus, a representar, a escrever sobre o que se está a viver, a tocar, a criar música como forma também de exorcizar o que estamos a sentir?”, questiona em conversa ao telefone com o i.
“Porque também há um estado emotivo neste momento no mundo. Estamos todos com uma emoção muito específica, uma emoção nova. Do medo, do medo da morte, do medo do que é que vai acontecer, do medo da crise económica, há vários medos aqui. Estou a tentar ser positiva. O meu medo agora é: até quando? Quando é que esta vacina aparece? Eles falam num ano. Já viste? Se passamos um ano sem podermos tocar-nos?”
O Festival Quarentena é transmitido em direto a partir do Facebook, na página do evento Quarentena – Festival de Artes Online. Consulte o programa completo aqui.