A hipótese literária: E se o coronavírus fosse a vacina?

A hipótese literária: E se o coronavírus fosse a vacina?


Com as livrarias fechadas, as feiras e os festivais cancelados, e as apresentações de livros adiadas, a pandemia do coronavírus está a paralisar o sector editorial e livreiro, mas se este colapso da dimensão comercial pode significar a falência para alguns, pelo menos, veio colocar a ênfase na passividade de um sector que há muito perdeu o rumo.


Já se ouvem os roncos vindos do estômago vazio do mercado. Está a ficar com ele colado às costas. Se a larica já o torce nos dias que estão bons para a feira, imagine-se agora diante de um tão largo período de confinamento. Dentro em breve estará a subir aos telhados, a atrair os pombos com miolo de pão seco, a ver se lhes ata com fio de guita umas bugigangas nas patas para que os bichos ganhem dignidade, fazendo serviços de correio pelo bairro. Quando também isso falhar, iremos ouvir-lhe os uivos, antes que se desfaça rebolando, esfaimado. Talvez alguns românticos contassem que certas zonas, em vez de planos de contingência, se esmerassem por montar um outro filme com as mesmas imagens, que vendo o rio estrafegado isso inspirasse às margens, em sectores como o do livro, ideias, planos, golpadas. Era engraçado. Ver este pandemónio que o coronavírus provocou a pegar no giz e pespegar no quadro modos de aproveitar o destrambelhamento e disrupção do mercado. Não só dar folga, mas voltar às lições introdutórias, à anatomia de um sector morbidamente obeso, cuja sobredimensionada oferta entope os canais, fixa para os livros prazos não muito melhores do que os dos iogurtes, aplicando-se em desvalorizar tudo aquilo que produz. Alguns terão imaginado que esta abrupta suspensão da normalidade, em vez de um movimentos de agências virtuais propondo trips nostálgicas ao dia-a-dia que, até há semanas, não supúnhamos que nos pudesse ser arrancado do dia para a noite, gerasse alguns focos de petulante galhardia, encorajasse milícias urbanas de chavalos envergando t-shirts onde se lesse Kronos, e que não deixassem de dar as boas vindas a esta gripe, que, com toda a má reputação que tem colhido, em algumas semanas fez mais para que alcançássemos uma redução drástica das nossas emissões de carbono do que décadas de mesas redondas, cimeiras, negociações, tratados a ver se a economia mundial dá licença, se faz um jeitinho, enquanto caminhamos firmemente para um cenário, esse sim, verdadeiramente apocalíptico. Mesmo esta intriga algo decepcionante, por estarmos ainda a aguardar pelos primeiros capitães das areias do futuro, menos interessados em deixar que tudo retorne ao mesmo, mesmo isto já é um lançar de dados, um abalo que nos diz que, por mais que o mercado faça por viciar o jogo, nenhum dos seus lances poderá abolir inteiramente o acaso. E é assim que da rede dos laboratórios que a natureza tem refundidos nos interstícios desta porra imensa – que, por estes dias temos a presunção de ter dominado – nos surge esta gripe sublimemente manhosa, que em vez de engendrar algo tão bestial e grotesco como as crescentes multidões de zombies (mais um sinal da subtileza do seu génio em comparação com o nosso) tem o requinte demoníaco, de não se mostrar, a graça de um inimigo que se serve da dissimulação, infiltrando-se, estudando as fraquezas, evitando deixar um rastro de devastação que logo o denuncie. Assim, não faz mais que dar aquele empurrão que precipita do cimo das escadas a sensação de invulnerabilidade das nossas sociedades. Há qualquer coisa de sonso no coronavírus, como se estivesse a contar ser apanhado e, por isso, enquanto faz das suas, pensa já na estratégia de defesa quando chegar a hora de ser julgado. É possível antecipar a forma como a sua defesa irá agarrar-se a uma série de atenuantes, à tese de que boa parte da responsabilidade pelo crime é partilhada com as vítimas. Por isso, esta é uma enfermidade da nossa prepotência. De tal modo que o primeiro instinto de alguns governos foi fingir que estava tudo sob controle. Enquanto isso, o vírus ganhava tempo, além dos infectados e dos mortos, fez desabar a moral, provocando um terrível embaraço antes que os gestores de campanha reformulassem os planos e o denunciassem como uma praga infernal. Agora resta esperar que a sua inteligência, a sua capacidade de adaptação, não supere a nossa capacidade de levantar muros, montar uma defesa, até estarmos municiados de arqueiros com flechas capazes de farejá-lo até que o seu menu de degustação se restrinja muitíssimo, e acabe condenado à dieta de morcegos e pouco mais a partir da qual se abalançou nesta invasão silenciosa, servindo-se de iguarias desde a base ao topo da cadeia alimentar. Nesta altura, desmoralizados como estamos, seria de esperar que estivéssemos em condições de retirar as fichas da nossa fé das habituais mesas de aposta, e, abandonando suposições inúteis, estivéssemos em condição de ir beber nos cálices das mais formidáveis especulações esses licores espirituais que fortificam a perplexidade, bifurcam o sentido e promovem a suspensão sanitária do juízo. Qualquer destes três efeitos daria um contributo mais certo para melhorar o estado de alma em tempos de peste, e, por esta hora, seria de esperar que um punhado de gauleses, desses que resistirão até ao fim pelas bandas literárias, se estivesse a rir da fraca figura feita pelos romanos frente a esta horda de microscópicos bárbaros. O curioso é que, do meio editorial e do sector livreiro, até ao momento, não vimos sequer uma faísca ser raspada, tentando ganhar alento para algo de mais incendiário. Não se recolheu ainda o menor sinal de um ânimo desafiador, poucos se lembraram de ler esta obra considerando a argúcia e a oportunidade da sua intervenção. É preciso tirar notas, reconhecer o fabuloso estratega, e rejeitar esta forma de alarmismo improdutivo, a passividade que nos dominou, e que aparece como uma espécie de atroz euforia nevrótica, própria de uma comunidade que, em nome do hedonismo de massas, traiu todos os valores morais do passado, incluindo a vastíssima biblioteca que nos foi legada ao longo dos séculos e que explora essa experiência crucial que é a dor e, no seu reverso, a resistência diante de ameaças existenciais. Vendo as coisas desse prisma, este vírus chega a ser um mensageiro bastante benévolo dos perigos que nos esperam. E é numa altura em que parece irreversível a aceitação dos dogmas da civilização capitalista burguesa, esse definhamento moral que passa pela subjugação aos imperativos económicos, e que não consegue supor, senão como uma fantasia, que este regime possa ser a verdadeira Peste, e que, face a ela, o novo coronavírus seja um ensaio clínico da natureza, uma vacina com alguma promessa. Porque o risco de termos virado costas em definitivo àquele mundo humanista do passado, que constituía, em si mesmo, um entrave à revolução tecnológica e financeira a que estamos a assistir, é, como nos diz Pasolini, o facto do novo poder configurar uma mutação da própria humanidade, exigindo que os “consumidores tenham um espírito totalmente pragmático e hedonístico; um universo tecnicista e puramente terreno é o único onde o ciclo da produção e do consumo se pode desenvolver segundo a sua própria natureza”. É por esta razão que a resposta das comunidades artística e intelectual tem tardado e, mesmo que surja muito provavelmente não mobilizará ninguém. Isto porque o consumo se transformou “na moral do mundo contemporâneo”, levando a cabo a “destruição das bases do ser humano, isto é, do equilíbrio que, desde os Gregos, o pensamento europeu manteve entre as raízes mitológicas e o mundo dos ‘logos’”. Baudrillard lembra que “da mesma maneira que a sociedade da Idade Média se equilibrava em Deus e no Diabo, assim a nossa se equilibra no consumo e na sua denúncia”. Ora, se “em torno do Diabo, era ainda possível organizar heresias e seitas de magia negra”, a magia que nos resta hoje é branca, “e não é possível qualquer heresia na abundância”. “É a alvura profiláctica de uma sociedade saturada, de uma sociedade sem vertigem e sem história, sem outro mito além de si mesma.” Por isso, não vemos bandos de jovens encorajados pelo desespero e já não pela esperança, capazes de abdicar dos nomes, de uma noção qualquer de glória, e completamente imersos no esforço de trair a espécie para o seu próprio bem, passando-se para o lado do vírus, fazendo do corpo a mensagem. Nada disso vemos. Só vemos o estado de furor, a eloquência ridícula dos chefes de estado, de uns balofos burocratas sanitários, instruindo o mundo a recolher. Vemos os centuriões tremer emparvecidos, os legionários coçarem-se, aguardando mais orientações. E quanto aos livros, o seu conteúdo de heresia vê-se cancelado por editores que não fazem mais do que suspirar pelo momento em que tudo isto passe e possamos voltar às coisas como elas seguiam até aqui. A perspectiva da destruição da vida no planeta não chega para comovê-los; inquieta mas não demove os acólitos desta igreja universal do consumo. Por isso, é bom que as livrarias se encontrem fechadas, os festivais e feiras adiados, e até as escolas, aonde acorre um bando de escribas de segunda para impingir a sua lixarada mental aos miúdos, estejam desertas. Com este corte abrupto da sopa para esse movimento acrítico, uma mole de impostores, actores com a sua histeria vaidosa, papagueando o que quer que seja, figuras que não fazem mais que repetir e descontextualizar os grandes textos, produzindo uma consciência sempre em diferido face à realidade, amorfa, e apoiada pelos mass media, perfeitamente alinhada com os interesses económicos, resta-nos esperar que o público se aperceba da capacidade destrutiva desta fantochada. Assim, onde estão agora os jovens escritores portugueses? Risquem os escritores, risquem os portugueses… Onde estão os jovens que deveriam estar agora empenhados em propor-nos alguma heresia à altura da situação? “Dêem-lhe todas as satisfações económicas de maneira que não faça mais nada senão dormir, devorar pastéis e esforçar-se por prolongar a história universal; cumulem-no de todos os bens da terra e mergulhem-no em felicidade até à raiz dos cabelos: à superfície de tal felicidade como à tona de água virão rebentar bolhas pequeninas.” (Dostoiévski) Este vírus merece ser lido, e lido sem ser seguindo essa pauta de interpretação de quem vê nele um mero empecilho para a ordem do dia. Talvez possa é ser tido como um esplêndido desmancha-prazeres. Mais do que qualquer obra de ficção publicada nos nossos dias, e até em contraste com a literatura de repouso que tanto se tem promovido nos nossos dias, nos efeitos que ele tem desencadeado, nas reacções que tem produzido, a sua capacidade de desestabilizar torna-o muito mais digno como exemplar literário do que esses títulos que colhem essa estéril adulação que é precisamente o que neutraliza a literatura e a arte. No fim, é importante não perder de vista a lição de Blanchot, quando nos fez ver que “a arte é, em primeiro lugar, a consciência da infelicidade, e não a sua compensação”.