Ricardo Mexia. “Não é linear que estejamos a agir mais cedo que Itália”

Ricardo Mexia. “Não é linear que estejamos a agir mais cedo que Itália”


Presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública apela à generalização de testes e explica o que vai mudar com a entrada na fase de mitigação da Covid-19.


O que vai mudar na resposta aos doentes nos próximos dias?

Teremos formalmente entrado na fase de mitigação da epidemia e portanto a expectativa é que a Linha de Apoio ao Médico (LAM) deixe de ser necessária para validar os casos e os doentes passem a ir diretamente aos hospitais, onde haverá áreas separadas para receber casos de Covid-19. Alguns hospitais já tinham essa solução implementada, montaram por exemplo alguns espaços no exterior, como as tendas instaladas no São João e em Santa Maria.

Devíamos ter passado mais cedo a esta fase de mitigação?

Se o SNS24 e a Linha de Apoio ao Médico tivessem tido capacidade de resposta não teríamos tido necessidade de passar mais cedo. Quando metade das chamadas ficam por atender, tínhamos de ter encontrado uma alternativa, ou capacitar a LAM ou capacitar o SNS24. O problema foi a dificuldade de resposta da linha que era suposto ser a “porta de entrada” de todos os casos suspeitos, onde seria ativado o percurso e orientação de cada caso.

A fase de contenção falhou então não só por causa da natureza do vírus mas porque o sistema pensado não teve capacidade?

Julgo que houve ineficiências várias que levaram a que não fôssemos particularmente bem sucedidos na contenção. Apesar de tudo e na prática, olhando para os números, não estamos muito diferentes do que aconteceu noutros locais.

Os números refletem a dimensão da epidemia em Portugal neste momento?

Temos vindo a defender há algum tempo que era preciso alargar a base de testes e houve vários exemplos que nos mostraram essa necessidade: os dois doentes que estavam internados em Santa Maria e que só a posteriori se identificaram quando foi alargada a definição de caso para pessoas com pneumonia de origem desconhecida ou o caso da jovem de Santa Maria da Feira que foi três vezes à urgência e só à terceira foi validada como caso suspeito. Como estes poderá haver outros. Esperamos que, com a descentralização, os hospitais sejam mais expeditos e sejam feitos mais testes, mas esperamos que agora não seja cada um por si. Vi por exemplo a informação de um drive through para despistagem no Norte, seria importante perceber como vão ser articuladas as respostas para termos informação que seja comparável.

Em Inglaterra a abordagem tem sido hospitalizar e testar só casos graves, o que significa que poderão existir muitos mais casos por contabilizar. Como a encara?

É uma abordagem diferente do resto da Europa e do mundo, menos interventiva. Estamos todos com alguma expectativa e apreensão porque reconhecemos que ou conseguimos conter a situação rapidamente com medidas mais expansivas e restritivas ou então podemos estar a falar de uma situação que se pode prolongar muito mais no tempo e, do ponto de vista social e económico, poder ser difícil de sustentar.

Em Inglaterra assume-se que a infeção pode chegar a 60% da população e que quem tem menos fatores de risco deve continuar a trabalhar. Pode fazer sentido?

A abordagem dos ingleses é uma estratificação da quarentena. Vão provavelmente isolar os grupos de risco, os mais velhos e os que têm patologia mais grave, e contar com o resto da população que tem casos muito ligeiros para fazer o país funcionar. Como desenvolve sintomatologia ligeira, a ideia é que poderão adquirir imunidade e depois faseadamente ir diminuindo restrições para os outros. A expectativa deles é que nessa altura já não haveria tantas dificuldades com equipamentos de proteção ou ventiladores e conseguiriam gerir melhor ao nível dos serviços de saúde. É uma abordagem que não foi testada em mais lado nenhum nem em nenhum outro contexto. Pode ser uma solução extraordinariamente bem sucedida ou ser o oposto, deixam as coisas ir desenrolando e às tantas ser demasiado vasto para conter.

Cá esse cenário não está em cima da mesa? 

Penso que não chegou a estar em cima da mesa esta opção, é uma aposta arriscada. Há quem diga que houve uma batalha entre os cientistas sociais e os epidemiologistas e os cientistas sociais ganharam. Tem riscos substanciais e sobretudo incerteza.

E irá sacrificar algumas pessoas, porque os jovens podem ter problemas.

Isso é verdade em todo o lado, haverá pessoas que estão expostas e são de risco. Em Portugal até temos tido mais casos confirmados entre jovens do que aquilo que aconteceu por exemplo na China, não sei se será pelas notícias e as pessoas estarem informadas, se pela idade dos profissionais de saúde contagiados, se foi o grupo de pessoas que no início viajou. Temos dois grandes grupos nos primeiros casos, o cluster do Norte ligado eventualmente à indústria do calçado e Milão e no sul alguns grupos ligados a viagens à neve.

Tem havido apelos para fechar já o que não é essencial, algo que o Governo tem estado a implementar gradualmente e tem ficado de certa forma na mão das empresas e autarquias. O que podemos esperar nos próximos tempos?

Acho que é inexorável que vamos ter de implementar medidas mais abrangentes de restrição, a questão que se coloca é se devemos colocar isso já em marcha e tentar conter a situação mais precocemente ou só vir a implementar essas medidas mais tarde e é aí que entra a ponderação da sustentabilidade económica e social das medidas, que também tem consequências na saúde e não podemos ignorar isso. É um equilíbrio difícil de manter. Vamos ver qual será decisão do Presidente da República na sequência do Conselho de Estado da próxima quarta-feira.

Já devia ter sido decretado de emergência?

Entendemos que se devia avançar para medidas mais abrangentes e seria uma mensagem para todos. A questão depois é quando será necessário por exemplo uma situação de quarentena obrigatória e qual é o melhor momento para tomar essa decisão.

A ministra diz que a curva pode crescer até ao final de abril. Se fosse agora, seriam pelo menos dois meses?

Pois e parece-me complicado que isso se possa fazer por um período tão extenso.

Com estes 300 casos, como está a situação nos hospitais e onde lhe parece que está a linha vermelha na capacidade de resposta do SNS?

A linha vermelha julgo que já estávamos muito próximos dela. Por isso aumentos de procura que não são assim tão grandes como o que temos tido, num sistema que já estava no limite, estão a gerar dificuldades. Do ponto de vista das hierarquias as coisas também ainda não são muito claras, não temos tido medidas centralizadas mas uma implementação ad hoc a nível local. A questão da dificuldade de equipamentos de proteção também se mantém.

Qual é neste momento o principal conselho à população?

Distanciamento social. As pessoas devem reservar-se de grandes ajuntamentos de pessoas e interação de pessoas com sintomas, reforçar medidas de higiene e estarem alerta para os sintomas. Tendo sintomas, até aqui a regra era contactar o SNS24, a perspetiva é que passem agora a dirigir-se aos serviços de triagem.

Devem ir de máscara?

Sim, se disponível, tem sido esse o conselho dado aos casos suspeitos, mas vejamos o que dizem as orientações que irão sair.

Seguindo esta via, quando podemos esperar que a vida regresse ao normal?

É muito difícil fazer uma previsão, vai tudo depender muito das próximas duas, três semanas. Temos o cenário chinês que já esteve numa situação muito complicada e agora aparenta estar num estado de controlo. Não está resolvido, mas está controlado.

Mas a população está há dois meses com a vida condicionada, no epicentro estão de quarentena há dois meses.

Sim. Sendo difícil implementar essas medidas, acho improvável que consigamos encurtar esse tempo para o regresso à normalidade. Apesar de tudo espero que não tenhamos a magnitude de casos que teve a China.

E uma situação como a italiana?

Eventualmente poderemos vir a ter e com mais de 20 mil casos será uma situação complicada para os serviços de saúde.

Tem-se questionado se começámos a agir mais cedo que Itália. Fecharam as escolas só na Lombardia mas quando tinham menos casos do que temos agora, mas também tem havido encerramentos em Portugal sem esperar por uma decisão das autoridades.

Para mim não é linear que estejamos a agir mais cedo que Itália. Itália começou mais cedo a massificar os testes e nós tivemos um grande estrangulamento por causa das dificuldades da linha de apoio ao médico e da capacidade de resposta, que agora deverá ser alargada. Vamos ter agora o fecho de fronteiras com Espanha, mas são medidas que demoram a ser efetivas e só vamos ter resultados no número de novas infeções dentro de cinco ou seis dias, o que só se vai refletir nos casos confirmados mais tarde.