Está tudo tão embaraçado. São linhas a mais, canetas de feltro como estacas, pincéis e bisnagas espalhados, as cores numa misturada que lembra um lodaçal – é uma balbúrdia que cansa só de olhar. E diante de tamanha barulheira visual, o que pode a ilustração fazer? Talvez separar os miúdos, pôr fim à zaragata, e depois abrir as janelas, para arejar o quarto. Catarina Sobral desenha como quem conserta um grande relógio, daqueles antigos, que davam corda a uma casa inteira, às vezes, na torre da igreja, a toda uma vila. A ilustradora sabe devolver ao tempo um vigor ancestral, essa inteligência de quebrar a chinfrineira da simultaneidade: separando os eventos, criando uma coreografia discreta. Nascida em Coimbra, em 1985, esta autora aprendeu a engenharia de dar espaço à subtil e encantadora passagem do tempo. Uma música tão delicada que mal se ouve. Linhas firmes, sóbrias, as cores respirando entre si, como acontece na natureza. A sua natureza tem essa simplicidade tocante de se perceber como cada detalhe pensa para si e intervém com esse esclarecimento no quadro geral. Mas depois, quando o seu mundo já nos tem, há algo de mais inquietante que se revela. Do mesmo modo que, debaixo de uma saia levemente soerguida, por vezes espreita-se um circo. A ilustração de Catarina Sobral serve-se de um decoro traiçoeiro, o de quem agita nas mãos uma caixa com furinhos e, ao agitá-la, espevita-nos a imaginação, que é, afinal, o animal que estava lá dentro e agora se escapou.
Depois de ter publicado vários livros ilustrados, de se ter afirmado como uma das figuras de primeiro plano da ilustração portuguesa, com traduções a multiplicarem-se numa epidemia benévola que se estende a vários países (Coreia do Sul, Japão, Brasil, Espanha, Suíça…), depois de uma série de prémios e distinções – desde logo, o Prémio Internacional de Ilustração da Feira do Livro Infantil de Bolonha, em 2014 -, depois de se ter aventurado na concepção de um espectáculo teatral para crianças, está a dar os primeiros (mas enérgicos) passos nos filmes de animação. Fomos entrevistá-la, agora que aceitou o convite da Fnac para integrar o júri no ano em que a Ilustração se estreia no concurso Novos Talentos, juntando-se às já habituais categorias – Cinema, Escrita, Fotografia e Música. Sobral junta-se a Leonor Zamith, Bernardo Carvalho e João Fazenda, tudo altas patentes que há muito montam um recreio em franca expansão, consultando um mapa mental desabusado e que vai dando pistas ao país e ao mundo sobre como desafogar o horizonte e reganhar perspectiva.
A ilustração é mais um pequeno enclave artístico ou é fácil penetrar esse espaço no nosso país?
Tenho a sensação contrária. De cada vez que há um evento de ilustração, seja um workshop, uma conferência, uma feira, um concurso de ilustração, que depois tem exposição e convidados… O meio é, já de si, pequeno, mas sinto que quando os novos ilustradores começam a frequentar esses espaços entram automaticamente nas redes dos editores, das pessoas que encomendam ilustração. Os ilustradores não ficam só próximos entre eles mas passam também a integrar o circuito comercial. Há muitos ilustradores novos a tentarem seguir uma carreira exclusivamente na ilustração, já que muitos deles também fazem design ou arquitectura, mas só o facto de partilharmos os nossos contactos e moradas nas redes sociais já acaba por fazer de nós um grupo coeso.
A iniciativa da Fnac pretende ser uma montra para o rejuvenescimento destas formas artísticas… Qual é a vossa expetativa em relação a isto?
É essa. Um dos aspetos do prémio é ganhar exposição nos fóruns da Fnac [espaço cultura]. Além do mais, é a primeira edição. Acho que isso traz alguma visibilidade. O nosso objetivo é ver coisas novas, frescas, inovadoras… isto é uma lapalissada, mas novos talentos é o que se pretende. Apesar de no universo da ilustração podermos sentir que estão formadas algumas correntes, mesmo ao nível das expressões nacionais – há uma ilustração espanhola, a checa, a francesa… E temos também uma escola portuguesa, em que podemos definir algumas características que lhe são próprias e dominantes. Podemos encontrar um conjunto de ilustradores portugueses com uma expressão idêntica…
Entre esses traços de um caráter português na ilustração, o que identifica?
Geometrias irregulares, cores planas em sobreposição, cores vivas; não há muita modulação de volume… São ilustrações muito bidimensionais, mas com textura. Isto vê-se em muitos ilustradores, e não digo que não se encontre também nos novos ilustradores, mas creio que dentro disso há margem para uma riqueza enorme, uma riqueza autoral em que cada pessoa faz as suas descobertas. Podemos dar com coisas muito diferentes, mas também julgo que iremos identificar uma matriz comum, e isso não é nada mau. Aliás, enquanto identidade da ilustração nacional, até é capaz de trazer alguma força, uma vez que somos reconhecidos lá fora também por isso.
Como será o processo de avaliação?
Temos um portefólio de três ilustrações para avaliar, tal como na fotografia. Vamos procurar uma coerência plástica entre as ilustrações, um sentido autoral… Uma coisa que não discuti com os outros jurados, mas que me parece que pode ser interessante, é que essas três ilustrações componham uma narrativa. Isso eleva o desafio. A questão de as ilustrações serem sequenciais ou não é algo que está em aberto. Ser sequencial acarreta mais risco, mas pode também ser mais aliciante. Particularmente, gosto de encontrar alguma capacidade metafórica nas ilustrações, porque a ilustração também é um texto. Não é verbal, mas é um texto. O tamanho é livre, a técnica é livre. Não há restrições. Podem enviar ilustrações digitais ou reproduções de ilustrações analógicas. É uma questão de ganhar relevo uma presença nesse conjunto.
Há limites de idade?
Não.
Como é passar do fazer ao plano do mentor, de alguém que aconselha e avalia?
Enquanto professora é muito interessante também para o meu trabalho ter esse ângulo de mentora porque para tentar orientar os alunos tive de criar um discurso sobre ilustração. Aquilo que no meu trabalho muitas vezes é intuitivo, quando estou a avaliar ou a comentar o trabalho de um aluno é preciso fazer esse caminho com ele, preciso de transformar essas intuições em alguma coisa que possa transmitir. Nesse aspecto é útil porque me ajuda a compreender melhor a ilustração e ajuda-me também a compreender melhor o meu trabalho. Quando se trata de avaliar, por vezes há uma dificuldade acrescida: estou entre pares, posso conhecer alguns nomes, e na ilustração, havendo muitas coisas que são objectivas, outras tantas são subjectivas. Tenho preferências, e é por isso mesmo que há um painel de jurados, ou seja, para essas preferências se diluírem. Mas sinto que é um trabalho mais difícil. Outra questão, é que enquanto professora o contacto é mais directo e sinto mais a ressonância desse trabalho. Sinto-me orgulhosa quando um aluno meu publica ou é distinguido, inicia um novo projecto, etc.
Se antes havia pouca literacia do ponto de vista da imagem, hoje parece haver uma saturação. Há quase uma lixeira visual a céu aberto e que se nos impõe. Do ponto de vista da criação, mas também de abrir caminho por entre esse lixo, como é que isso influencia o seu trabalho?
Acho que a ilustração pode ter um enorme contributo a esse respeito. Dou um exemplo: capas de livros. Quando começaram a fazer-se capas de livros a partir de fotografias a grande maioria delas eram bastante más. Eram imagens levantadas de bancos de imagens, que não me parece que favorecessem os livros enquanto objectos gráficos. Custava-me comprar a maior parte dos livros. Mas a partir do momento em que a ilustração voltou a ganhar algum terreno nesse campo sinto que a qualidade gráfica melhorou substancialmente. Isto em qualquer dos géneros, seja romance, ensaio… Não estou sequer a falar de livros ilustrados. Quando vejo ilustração em áreas como a publicidade, a arte urbana (havendo muitos ilustradores que são convidados para fazer murais), cartazes de eventos, capas de cd’s, acho que isso ajuda realmente a trazer valor estético ao nosso imaginário visual, e aquilo com que contactamos todos os dias. Claro que há má ilustração, como há bom design e muito boa fotografia. Mas, e talvez seja da minha sensibilidade, sinto que ilustração ajuda a fazer alguma limpeza visual do espaço.
E como é o confronto com o design? Hoje vivemos numa sociedade em que o design se infiltrou em todos os aspetos da vida, e constitui já uma ordem, uma ética. Qual é a ligação entre os dois e em que aspetos se afastam?
A ilustração é mais autoral do que o design. Normalmente enfrenta menos constrangimentos na sua capacidade comunicativa. Sendo mais livre pode ser mais metafórica, mais aberta a interpretações… O design tem maior necessidade de ser eficaz do que a ilustração. A relação normalmente é de parceria. A ilustração entra nestes suportes que o design trabalha e que orienta artisticamente, e quando há um bom casamento acho que a questão da limpeza visual é muito mais eficaz. Quando sou jurada muitas vezes também me vejo perante esta questão. Porque há uma certa democratização da ilustração às vezes há coisas que ficam mais uniformes mas, por outro lado, também ficam tecnicamente mais bem feitas. E isso traz essa sensação de limpeza, de respiro… Se antes podíamos encontrar uma ilustração sem grande cuidado, sem uma qualidade autoral significativa, mas, se pelo menos é bem feita, já traz ar e respiração para os olhos. Isso é até visível em coisas muito simples: basta olhar para o que se vê nas plataformas, as ilustrações que nos surgem na Dropbox, no Facebook… Reconhecemos ali um estado da arte da ilustração mundial. E embora chateie que seja tão coerente, na verdade, é bem melhor do que o que existia antes.
Para as pessoas da nossa geração, a regra é termos crescido com os filmes de animação da Disney, que estabeleceu o registo default. Que confronto é o vosso a esse respeito, sobretudo pelo facto de lidarem com públicos mais jovens, que estão muito expostos aos produtos de massas? Em que medida a ilustração é uma espécie de poesia face a esse regime da prosa? Uma interrupção, uma arte que pensa antes de tudo a própria linguagem?
Não é que as coisas da Disney sejam más, o problema é serem o default. Aquilo a que isso leva é que os públicos consumam coisas estereotipadas. O que tenho sentido nos últimos anos é que, perante uma ilustração diferente, cada vez mais autoral, mesmo ao nível das narrativas, os próprios livros infantis (e é difícil falar de ilustração sem falar de livros infantis) até nas histórias fogem a esses estereótipos. Com esta nova ilustração vieram novas histórias. Tudo isso me ajuda a entender a ilustração como essa espécie de interrupção do já visto, do que é prescritivo, do que tende para o nivelamento e pode já estar ultrapassado. Gosto dessa ideia da comparação com a poesia. Sinto isso. É claro que também há ilustração má, como há má poesia. O mesmo se pode dizer do cartoon, em que quanto mais elevado é o seu poder metafórico, mais essa arte se eleva e ganha novos níveis de leitura.
Sendo a ilustração uma arte que pode ter um caráter disruptivo, houve alguma obra que, quanto a si, tenha realmente tido um impacto transformador da paisagem?
Há um livro ainda bastante recente – saiu no ano passado -, mas é uma das minhas últimas paixões e acho que tem esse poder. É um livro chamado Julian is a Mermaid [de Jessica Love]. Basicamente, é a história de um menino que vê sereias no metro e que, ao chegar a casa, decide vestir-se de sereia. As sereias são uma metáfora para os transexuais ou travestis, portanto é um livro que toca na questão da identidade de género. Então ele veste-se dos pés à cabeça com colares e com penas, e então a avô chega a casa e, inicialmente, parece zangada, dizendo-lhe “vem comigo”. Depois leva-o a ver outras sereias e entram num desfile que poderia ser uma parada LGBT ou algo do género. Mas a forma como isto se constrói, a delicadeza, dizer que são sereias, que é uma metáfora lindíssima, e mostrar uma abertura tão grande e transmiti-la às crianças… Este livro teve um grande impacto em mim, e isso deve-se também à ilustração.
E quanto à questão do género, alguma vez sentiu o ser mulher como uma diferença que lhe criou um impedimento ou gerou algum tipo de limitação no seu trabalho como ilustradora?
Sim, por vezes sinto isso. Mas olho para a quantidade de mulheres que são ilustradoras, e que são reconhecidas, e parece-me que é uma das áreas em que há menos impedimentos. Talvez intervenha aqui o lado histórico, pois se pensarmos quem foram os grandes pioneiros nesta área vem logo à cabeça a Beatrix Potter. Vêm-nos à cabeça uma série de ilustradoras. Um dos autores que mais revolucionaram a ilustração no século passado foi a Kveta Pacovska, uma ilustradora checa que arrancou esta arte daquele plano mais frio, académico, das aguarelas, dos guaches, e entregou-a a uma explosão de cores, com colagens, materiais brilhantes… Historicamente, temos essa vantagem. De qualquer modo, é inevitável não sentir o ser mulher como uma diferença, profissionalmente. Talvez ainda nos leve muito tempo a equilibrar verdadeiramente as coisas.
Tenho a ideia de que a sua obra é uma emboscada, pois tal como nos convida e parece ser de uma grande candura, logo vemos que há nela um arranjo de saias e, ao levantar cada uma, as coisas tornam-se mais estranhas e revelam outras identidades. Agora que já não tem de provar nada a ninguém, o que se segue?
Novos formatos. É claro que há imensas coisas no livro que eu ainda não fiz nem experimentei. Ainda não consegui fazer um livro para crianças muito novas. Há ainda assuntos que quero tratar nos livros, formatos que gostaria de usar… Mas, de momento, estou muito entusiasmada com a animação. Estou a fazer o meu segundo filme, e há dois anos fiz um espetáculo de teatro, que é um formato diferente e que mistura outras formas de arte: a música, a performance, a narração. E este desbravar de outras áreas, colaborar com outras artes parece-me muito enriquecedor para a própria ilustração. Quando a imagem ganha movimento, ganha essa outra dimensão que a música lhe dá e o texto ganha voz, tudo isso dispõe um outro horizonte. Mas mantenho a minha adoração pelos livros, esse formato tão desafiante, até pelos constrangimentos que impõe. Gosto de me impor constrangimentos como modo de me espicaçar quando desenho.