Anfield voltará hoje às suas grandes noites. O resultado de Madrid promete dificuldades para os campeões da Europa, que têm de reverter o 0-1 da primeira mão. Algo a que estão habituados. E que nos faz regressar no tempo para recordar como tudo começou. Foi à bruta.
Taça dos Clubes Campeões Europeus de 1964-65. Pela primeira vez, o Liverpool disputava jogos na Europa. Bill Shankly, o grande mestre, chegara a Anfield em 1959 e construíra um conjunto competitivo que agora defendia a honra dos ingleses na mais importante das competições continentais. Não se pode dizer que o sorteio tenha sido desagradável. Um nome esquisito: Knattspyrnufélag Reykjavíkur. Um clube islandês que a imprensa tratou de resumir a simplesmente KR. Em Reiquiavique, os vermelhos garantiram o apuramento vencendo por 5-0, com golos de Wallace (2), Hunt (2) e Chisnall. A 14 de setembro de 1964, Anfield abria pela primeira vez os seus portões para que a Taça dos Campeões ganhasse, nessa noite, um dos seus mais emblemáticos palcos. Os islandeses foram abatidos sem dó nem piedade: 6-1, golos de St. John (2), Hunt, Byrne, Graham e Stevenson contra um de Felixson. Quem poderia exigir estreia mais brilhante? Os adeptos saíam felizes para beber umas cervejas nos pubs que ainda estivessem abertos. A eliminatória seguinte enfermava de problemas bem mais bicudos: seria frente aos belgas do Anderlecht.
O Liverpool-Anderlecht de 25 de novembro foi o segundo jogo europeu de Anfield e ficou para a história do clube devido à decisão de Shankly de fazer com que a equipa trocasse os seus habituais calções brancos por uns encarnados, com a justificação de que davam um aspeto mais aguerrido. O equipamento completamente vermelho ficou até hoje.
Provavelmente intimidados, mais pelo furor das bancadas do que pelos calções dos adversários, os belgas saíram vergados a uma derrota por 0-3, golos de St. John, Hunt e Yeats. O enorme Roger Hunt, que seria campeão do mundo pela Inglaterra em 1966, fez o golo único de Bruxelas. Tudo corria pelo melhor aos rapazes de Mr. Bill.
A moeda Nessa época a que este texto se refere havia ainda o embirrento método de desempate à custa de moeda ao ar. Nos quartos-de-final, face ao Colónia, Anfield não cuspiu o vulcânico fogo do costume. Os alemães mantiveram um desinteressante zero a zero e o resultado aborrecido repetiu-se em Colónia. Primeira solução para resolver o problema: jogo de desempate marcado para Roterdão.
Tudo parecia correr sobre carris com a precoce vantagem dos ingleses. Dois golos marcados por Ian St. John abalaram a ferocidade alemã mas, se há alguém que nunca se dá por vencido, esse alguém é certamente alemão. Karl-Heinz Thielen e Johannes Löhr restabeleceram o empate. Faltavam ainda cinco anos para que as grandes penalidades surgissem em equações deste género. Robert Schaut, o árbitro belga, chamou os capitães Ron Yeats e Wolfgang Overath ao centro do terreno e atirou a moeda ao ar. Caiu numa posição tão estranha como indecisa. Robert repetiu o gesto, a escolha de Yeats foi premiada: o Liverpool seguia para as meias-finais, onde encontraria o Inter de Milão.
Não há dúvidas de que atingir essa fase da prova logo no ano de estreia foi uma proeza. Ainda por cima porque, no dia 4 de maio de 1965, Anfield voltou a rugir assustadoramente. Hunt marcou aos 3 minutos, mas Mazzola empatou logo depois. Callagham e St. John assinaram o 3-1, que parecia abrir as portas a uma final frente ao Benfica. Muito se queixou a imprensa britânica dos acontecimentos de San Siro na segunda mão. Um árbitro espanhol com nome de fidalgo, José María Ortiz de Mendíbil, validou um golo muito discutível ao seu compatriota Peiró que deu o 2-0 após Corso ter aberto o marcador logo aos 8 minutos. Facchetti condenaria o Liverpool à desoladora derrota por 0-3. Na época seguinte, na Taça das Taças, os reds chegaram à final e perderam com o Dortmund. Anfield ganhara definitivamente os seus galões europeus.