Parece que o mais recente capítulo relacionado com a votação dos nomes propostos pelo PS para os cargos de juízes do Tribunal Constitucional e de presidente do Conselho Económico e Social foi mesmo o último, a derradeira machadada final, da Geringonça.
Se a Assembleia da República ter chumbado o nome de Correia de Campos para um segundo mandato na presidência do Conselho Económico e Social acaba por ser mais caricato, visto que se tratava de uma recondução e até havia vozes favoráveis no PSD, o chumbo de Vitalino Canas é uma clara demonstração de arrogância política do partido de António Costa.
Este último nome chumbado, previsível à luz do histórico político que carrega às costas, era certo que teria de ser trabalhado pelo PS. Na prática, se juntarmos aos 108 deputados do PS, 19 do BE e os 10 do PCP, que reeditaria a Geringonça, estes 137 deputados não chegariam para a maioria de dois terços: 146 votos a favor.
Assim, se fosse bem feito (que não foi), o PS teria de se sentar à mesa com o PSD e esperar que a consensualidade existisse ou, quem sabe, algum acordo surgisse. À imagem do que é público, não houve reunião. O PSD navegou ao sabor do seu vento e ficamos sem saber de o BE e o PCP foram descarregar algum voto a favor… embora a matemática demonstre que não. Vejamos.
Vitalino Canas e António Clemente Lima foram sujeitos a votação em lista conjunta tendo merecido apenas 93 votos favoráveis, contra 96 votos brancos e 30 nulos, num total de 219 votantes que estavam presentes e aptos a votar na sessão plenária. Assim, à luz destes números, nem na bancada do PS (que tem 108 deputados) o nome do ex-porta-voz de José Sócrates foi consensual. Vitalino Canas ficou bem longe dos 146 votos que necessitava.
É importante referir que a votação é secreta e assim não há forma direta de saber de onde vieram os “chumbos”. Mas,mesmo assim, se os 11 deputados que faltaram à votação fossem todos da bancada do PS, tal não chegava para perfazer o total dos 108 deputados socialistas que a compõe. Ou seja, houve mesmo quem, no PS, não tenha votado a favor de Vitalino Canas para juiz do Tribunal Constitucional. É facto.
Vê-se ainda, falando dos ex-parceiros de Geringonça, que nem o PCP nem o Bloco de Esquerda esqueceram o papel de provedor da Associação das Empresas de Trabalho Temporário – que desgostaram publicamente – que o socialista Vitalino Canas desempenhou.
Sobre Correia de Campos é também difícil de digerir taticamente o comportamento socialista ao nível da política negocial. O ex-Ministro da Saúde socialista falhou novamente a reeleição para a presidência do Conselho Económico e Social, depois de, em dezembro passado, já ter chumbado por 15 votos. Agora chumbou com apenas 110 votos favoráveis, de um total de 219 votantes e teve ainda 82 votos brancos e 27 nulos. Ou seja, falhou por 36 votos, mais do dobro do lhe tinha faltado há dois meses!
Em suma: O PS não negociou nada. É notório que nem alcançou uma garantia mínima de conseguir os votos da esquerda (BE e PCP, pelo menos), como muito menos arregimentou qualquer garantia com o PSD que é o segundo partido mais representativo do parlamento português.
Porventura, fruto da insatisfação com o seu próprio mau trabalho político negocial, a líder de bancada socialista, Ana Catarina Mendes, teve uma reação curiosa. No arauto da reconhecida recente postura do PS, tipicamente “Quero, posso e mando”, criticou a líder parlamentar do PS o facto de os deputados à Assembleia da República terem “bloqueado” o normal funcionamento das instituições. Irónico. Irónico dizer-se que quando algo é derrubado é contra o “funcionamento das instituições”. Se em 2015 uma maioria parlamentar serviu para derrubar o candidato mais votado em urna, Pedro Passos Coelho, e não foi visto como “bloqueio ao funcionamento das instituições”, mas como sinal de uma possibilidade prevista na lei, agora, uma mesma maioria clara parlamentar que vetou nomes propostos pelo PS já não teve a mesma sorte no livro da “boa democracia” do PS.
Mas não é só em virtude do chumbo de todos os nomes propostos pelo PS para os cargos de juízes do Tribunal Constitucional e de presidente do Conselho Económico e Social, assim como os nomes dos sete vogais propostos para o Conselho Superior de Magistratura, que se sente o fim da Geringonça.
Basta vermos um outro caso melodramático que coloca em check a Geringonça: O Aeroporto do Montijo.
Não adianta, para este caso, abordar a cronologia de 60 anos de estudos para a nova localização do aeroporto que irá dar aporte maioritário à Área Metropolitana de Lisboa. Neste caso basta pensar o que está a falhar ao PS: A falha de acordo para não ver o projeto bloqueado por uma conhecida Lei que dá poder às câmaras para chumbar o novo aeroporto no Montijo.
Foi distração ou falha negocial do PS, mas todos os Governos que promoveram o aeroporto complementar do Montijo, desde o Governo liderado por Pedro Passos Coelho até aos dois recentes Executivos de António Costa, tinham conhecimento desta legislação de 2010 onde, no decreto-lei dos aeródromos, se dava total poder às Autarquias afetadas para travar a infraestrutura.
Mesmo com total conhecimento, e já quatro anos de legislatura volvidos entre 2015 e 2019 (não são novos nestas andanças) de PS, ninguém avançou com uma alteração legislativa em relação a esta matéria até que o ministro Pedro Nuno Santos afirmou publicamente que a lei teria de mudar. Quando? Quando o atual Governo foi confrontado com a oposição de pelo menos duas autarquias, Moita e Seixal, ao projeto de expansão do aeroporto para o Montijo.
Curioso e afeto à Geringonça? As Câmaras da Moita e do Seixal são precisamente lideradas pelo PCP, um ex-parceiro que nos últimos 4 anos muito estendeu a mão ao PS de António Costa e Pedro Nuno Santos.
E, por fim, uma terceira nota que prova que a Geringonça “já era”: O caso das propostas do BE e do PCP para a redução do IVA da eletricidade para os 6%.
Com uma grande dose de teatralidade, à imagem do fantasma da ingovernabilidade acenada por António Costa aquando do caso do tempo de serviço dos professores, onde esteve o estender a mão do BE e do PCP ao seu antigo líder de Geringonça, o PS? Não esteve. Não existiu. E provou, desde essa hora, que não vai existir.
Em suma, é evidente que a Geringonça terminou. Acabou. Não haverá mais. Por motivos de subsistência de uns, o PCP, por egos de outros, o BE, e ainda por clara arrogância e sobranceria de outros, o PS. Mas, factualmente, perderam o que muitos eleitores de esquerda subscreviam como aliança perfeita e, tantos outros, defendiam como mau caminho perante a história democrática de um partido de poder como o PS.
Cabe ao PS tirar as suas ilações.
Vivemos, notoriamente, com um PS que atua politicamente a pensar que tem maioria absoluta sem a ter. Um PS que quis acabar com a Geringonça, deliberadamente, mas faz sempre as contas parlamentares como se ela ainda existisse.
Acima de tudo, existe hoje um PS que tem de perceber que lidera um Governo Minoritário e que, na Assembleia da República, quando a democracia assim escolhe esse caminho, quem lidera nestas condições tem de negociar e contar com todos. Um Governo Minoritário tem de aceitar as imposições e propostas dos outros partidos e, acima de tudo, saber que nem sempre as suas vontades irão passar por falta de votos.
Carlos Gouveia Martins