Os Estados são muito ciosos em relação aos poderes soberanos. Por muitos séculos, não admitiram a sua partilha. A função jurisdicional foi ao longo da maior parte da história da humanidade um exclusivo do Estado. As comoções do pós-II Guerra Mundial permitiram aos indivíduos (e às pessoas colectivas) acederem a mecanismos jurisdicionais de base internacional, podendo demandar o respectivo Estado perante uma entidade externa e supra-estadual não controlada pelo próprio Estado que consideravam como responsável pela violação dos seus direitos. Este luxo civilizacional ainda é, em grande medida, um privilégio europeu, por via do Conselho da Europa (e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, CEDH) e da União Europeia (por via dos vários graus de jurisdição dos tribunais europeus). O sistema interamericano ainda vive a primeira infância, com um filtro estadual muito apertado no que respeita à admissibilidade das queixas formuladas por indivíduos. Já o sistema africano de protecção de direitos humanos continua a ser uma promessa só parcial e residualmente cumprida no que respeita ao acesso dos indivíduos ao Tribunal Africano dos Direitos Humanos.
O sucesso da CEDH foi fruto da quase gratuitidade no acesso, da respectiva simplicidade (basta o preenchimento de um formulário disponível online) e do activismo da Comissão Europeia. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido quotidianamente a vis expansiva dos direitos tutelados pela CEDH, muito para lá do texto do articulado, marcado pelo tempo (1950…), e garantindo uma interpretação actualista, assegurando a adequada protecção contra as violações resultantes das novas tecnologias.
A CEDH vive em grande medida do respectivo artigo 6.o, que protege o direito a um processo equitativo. Em relação a Portugal, o acumular de sucessivas condenações por violação do artigo 6.o da CEDH, quase sempre por verificação de “atrasos na justiça”, já levou a duas revisões constitucionais que, em 1989 e em 1997, acrescentaram dois novos números ao artigo 20.o da lei fundamental (acesso ao direito, a que, em 1997, se acrescentou na epígrafe a tutela jurisdicional efectiva) com um corta-e-cola de trechos do artigo 6.o da CEDH (“4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva”.).
Para além da constatação recorrente dos atrasos no funcionamento da justiça lusitana, o TEDH tem declarado inúmeras vezes a falta de equidade dos respectivos procedimentos. Tais decisões reconheceram a desigualdade de armas (em particular por parte do Ministério Público enquanto representante do Estado ou enquanto defensor de interesses de parte), mas também as relacionadas com a tutela da aparência. No caso Paixão Moreira Sá Fernandes contra Portugal, o TEDH decidiu, a 25 de Fevereiro deste ano, que a imparcialidade do tribunal implica uma tutela da aparência, pelo que a repetição da composição do tribunal numa segunda decisão é, per se, suspeita. Esta abordagem está há muito ancorada na jurisprudência de Estrasburgo para a qual o TEDH remete: “Justice must not only be done, it must also be seen to be done” (caso Morice contra França).
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990