O Portugal dos nichos


O nicho é útil, porque distrai a atenção geral das grandes questões, dos pilares fundamentais de qualquer sociedade moderna, que em Portugal apresentam sinais preocupantes.


A política dos nichos só serve a desresponsabilização comunitária em relação ao interesse geral. Distrai as atenções, mas não resolve nada do essencial. Por impulso de resolução de atrasos civilizacionais, de agendas políticas pessoais ou de afago a determinados nichos eleitorais, acentuou-se em Portugal a emergência de uma linha política de ação em relação a determinados nichos temáticos que, para o bem, podem responder a questões marginais que estavam por resolver, e, para o mal, correspondem a derivas perigosas de populismo, xenofobia e racismo.

O nicho é útil, porque distrai a atenção geral das grandes questões, dos pilares fundamentais de qualquer sociedade moderna, que em Portugal apresentam sinais preocupantes da adequada falta de vontade política, de recursos e de consequência.

O nicho é conveniente, porque permite dar protagonismo no quadro de uma sociedade mediatizada, pontuada pela ligeireza, volatilidade e inconsistência das abordagens, sempre mais preocupadas com o preenchimento do tempo de emissão do que com a substância.

O nicho, por ser nicho, excetuando o PAN e o Chega, que fazem da deriva uma estranha forma de vida, dá acolhimento a uma renovada participação dedicada, segmentada, que está presente nas comunidades e cujas partes perfazem já adeptos consideráveis. Alheados da participação geral, da discussão sobre as grandes questões que são estruturantes em qualquer sociedade, fustigados pela carga fiscal, os cidadãos direcionam-se para exercícios de participação segmentada em função de nichos ou de interesses parcelares. As novas dinâmicas sociais, do bem-estar humano ao bem-estar animal, acabam por propiciar novas adesões a estas tendências, gerando apetites eleitorais e novos posicionamentos públicos e mediáticos em que a tentação para a falta de rigor, a instrumentalização e a manipulação está presente.

É normal que estas dinâmicas existam nas comunidades e elas acompanham realidades já sentidas noutras latitudes. O que não é normal é que, a pretexto de uma espécie de acerto de contas com a História, com o nível de desenvolvimento ou com o que quer que seja, o coletivo se lance nesta deriva dos nichos esquecendo-se de que tem as questões estruturais da saúde, da educação, da justiça, da coesão social, da coesão territorial ou da sustentabilidade para resolver. É que, depois, anda tudo ligado e tudo serve para sustentar a defesa dos bloqueios que persistem na sociedade portuguesa.

O recente debate sobre a eutanásia, a que sou favorável num quadro de expressão individual de vontade e de insuficiência de resposta médica para os casos concretos, um dos principais argumentos foi o de que, em vez de se precipitar a morte, dever-se-ia gerar melhores condições de cuidados paliativos. Isto é, para fazer frente ao nicho, o argumento era o da falta de respostas para a questão central, na área da saúde. O fantástico foi ouvir alguns nãos sustentados na real insuficiência dos cuidados paliativos protagonizados por quem, no tempo dos Governos PSD/CDS, teve responsabilidades em quatro anos de marcar passo, com equipamentos desse segmento, prontos para entrar em funcionamento, mas sem acordos com a Saúde e a Segurança Social para o efeito. Tão fantástico como ter havido quem nada tivesse dito no programa eleitoral e muito pouco ter dito sobre a substância para, em mais um exercício do reconhecido potencial de manobra na sombra, ter levado o tema ao resultado pretendido, sem pagar fatura e projetando na Presidência da República o ónus tóxico da abordagem ao posicionamento do Parlamento. Se veta, fustiga parte do seu abrangente eleitorado presidencial e o Parlamento pode confirmar; se envia para o Tribunal Constitucional, coloca-se nas mãos dos juízes. Para quem esteve quase sempre ao lado das soluções governativas, digamos que é sinónimo de alguma ingratidão, quando é sabido que a margem presidencial de ação é cada vez mais reduzida.

O Portugal dos nichos temáticos ou eleitorais pode servir para preencher as agendas pessoais, alimentar segmentos populacionais, entreter as atenções gerais e sustentar os espaços mediáticos, mas não resolve nenhum dos grandes problemas estruturais do país. É mais espuma para a espuma dos dias, sem consistência e com a agravante de que, mudando as maiorias políticas do país, existe o risco de tudo voltar a mudar.

Portugal precisa de coerência, foco e previsibilidade. A inconsistência de algumas opções políticas e os riscos que a falta de senso que algumas derivas de nichos implicam estão a penalizar o país, dentro e fora do território nacional.

Quem ande com a cabeça na árvore poderá ter dificuldade em vislumbrar a floresta e o que alguns, enfunados pelo chico-espertismo e por uma incontrolável habilidade para a manigância política, possam estar a fazer para, como sempre, não olhar a meios para o fim da sobrevivência política. Esta é outra expressão do país dos nichos: os que buscam apenas a sobrevivência política no quadro geral do sistema partidário atual é o que não falta.

 

NOTAS FINAIS

NÃO APRENDER. O enredo em torço do orçamento da União Europeia, com foco nos recursos para a coesão, revela a incapacidade comunitária para ter aprendido alguma coisa com o Brexit e com a emergência de vários populismos. Em rota para a presidência portuguesa da União Europeia, emerge um certo desprendimento das questões nacionais em favor dos holofotes do estrelato internacional.

NÃO COMPREENDER. O exercício político, investido de funções públicas, deve ser sempre humilde, porque é transitório. Fundar opções políticas na inteligência dos pássaros ou proclamar o não pagamento de prémios na TAP quando não se risca o suficiente, ao invés do que perpassou para a opinião pública, é pífio. Poucochinho e arrogante.

INSANIDADE. O segmento das adrenalinas saltitantes não tem noção do risco próprio e dos riscos alheios. Conduzir um automóvel a 300 km/hora é não ter pingo de noção própria e da vida em comunidade. Cortar pela segunda vez a Segunda Circular para homenagear a insanidade fatal é uma irresponsabilidade que, infelizmente, o desfasamento de meios humanos e materiais das forças de segurança permitiram. Há sinais que não podem ser dados à sociedade.

AFINAL, BEM. Na semana passada critiquei a saída de David Santos da Direção-Geral do Património Cultural. Menos mal, a Cultura nomeou-o curador da Coleção de Arte do Estado. Bom trabalho, para que não se percam obras do Estado em desvios permitidos por uma máquina que não sabe o que tem, mas quer sempre mais.

Escreve à segunda-feira