O que 223 decidiram por 10.810.674 portugueses


Eutanásia. Não há outro assunto que mais relevância tenha para o comum e informado português do que aquilo que se debateu, ontem, sobre a despenalização da morte assistida na Assembleia da República.


A Eutanásia, esse tema que o Parlamento dividiu entre votos de “Sim” e de “Não” e que o país continua sem debater minimamente para saber qual será então a estrada que politicamente escolhemos percorrer.

Primeiro, mesmo antes do que muito se ouviu, dizer que é natural e legal que o Parlamento tenha competência para legislar esta matéria. É legal, não se invente mais. Não há forma séria de se questionar as competências políticas que os deputados à Assembleia da República têm e, sendo honesto intelectualmente, quem o fizer presta um mau serviço ao respeito por este órgão de soberania nacional.

Não refuto que há legalidade dos 230 representantes, democraticamente eleitos, decidirem o trajeto político sobre qualquer matéria que diga respeito aos portugueses. Aos portugueses todos mesmo. Mas, em consciência sabemos que matérias de igual consciência pessoal carecem de, isso mesmo (pasme-se!), uma amplitude de consciências. Com dúvidas? Se cada consciência vale o mesmo, devemos ter todas as consciências a “falar” porque a de qualquer deputado não representa a minha nem a sua.

Sem dúvida, pressão religiosa ou partidária, uma matéria que é inclusiva de qualquer vida e não exclusiva de meia dúzia de agentes políticos, deveria ser alvo de referendo popular. Devia e deve.

Sem demagogias, este caminho de despenalizar a Eutanásia foi decidido ontem por 223 deputados (7 faltaram). Temos quase 11 milhões de portugueses inscritos na decisão democrática do nosso país. São 10.810.674 portugueses. Assim, sem demagogias, num assunto de consciência pessoal, os 223 deputados são apenas 0,0021% da globalidade da opinião portuguesa sobre a morte assistida.

Os revoltosos desta matemática dirão que são os representantes dos quase 11 milhões de portugueses. Correto, o voto em urna os coloca nesse patamar. Os favoráveis a esta mínima opinião de exclusão de opiniões dirão que só foram sufragados e escolhidos por 48% da sociedade portuguesa porque apenas votaram 5.251.064 portugueses do universo de 10.810.674. Também têm razão. É que nem assim há consenso sobre a consensualidade desta aprovação da despenalização da Eutanásia. Representam, estes 223 deputados, muito pouco do que querem decidir. Excluímos neste debate 99,9979% das consciências do nosso país.

Não terei nunca a “sabedoria” e “poder de futurologia” da deputada Mariana Mortágua que, em pleno debate parlamentar de ontem, afirmou que a aprovação da despenalização da Eutanásia era o que uma “clara maioria dos portugueses” queria. Não tenho esse poder de «adivinhação».

Não podemos entender ou politizar algo tão sério, dizendo que o referendo popular iria servir apenas para rejeitar a vontade de despenalizar o que os deputados aprovaram. Mas também se torna curioso que, se se julga que a maioria dos portugueses entende ser esse o caminho, o “Sim”, que os subscritores dos cinco projetos de Lei não queiram ver as suas propostas reiteradas e superiormente validadas por todo o país. Se acham que Portugal decidiria inequivocamente pelo “Sim”, de que esperam?

Pelo menos, ao BE diretamente, a julgar pela declaração de certeza de Mariana Mortágua, deveria propor imediatamente um referendo. A aprovação popular iria dar mais força ao seu projeto de Lei. Ganhava a democracia e era reforçada a vontade conjunta entre sociedade e poder político.

Em rescaldo, todos os cinco projetos de Lei para a despenalização da Eutanásia, elaborados pelo PS, BE, PEV, PAN e Iniciativa Liberal, foram aprovados na Assembleia da República. Em média, dentro dos 223 deputados presentes, foram apenas 86 aqueles que se demonstraram contra votando “Não”. Agora, e legalmente correto, deu-se aval para dar continuidade ao processo legislativo sobre a morte assistida.

Este processo e importante debate de sociedade, independentemente da votação de uma parte dos portugueses na sessão plenária da Assembleia da República de ontem, é assente em várias premissas que os mais facciosos tardam em aceitar.

Primeiro, não é uma matéria ideológica. Nem pode ser. A Eutanásia não é bandeira de Esquerda nem é de Direita.

Vejamos duas posições, ambas de qualidade superior, antagónicas no sentido de voto mas coincidentes na visão ideológica de – neste caso – serem de Esquerda.

O PCP e um deputado do PS. Ambos defensores de uma visão política de Esquerda para a sociedade portuguesa.

A posição e respetiva justificação do voto “Não” por parte dos comunistas – cuja declaração oficial do Partido merece atenção e leitura atenta dos interessados pela sua pertinência e seriedade que possui – e um brilhante discurso favorável ao “Sim” do deputado socialista Alexandre Quintanilha. Ambos de Esquerda, ambas posições sérias mas em lados opostos.

É possível haver mérito e bons argumentos, neste caso duas excelentes prestações, que sejam afetos ao “Sim” ou ao “Não” neste debate que não é de hoje e que não acabou ontem no Parlamento.

Na vida política deve-se avaliar, independentemente da posição pessoal ou consciência de cada um, sem facciosismos, a qualidade de argumentos. O PCP e, neste caso, o PS por via de um dos seus deputados, demonstraram que a Esquerda ideológica pôde diferir na opinião (“Não” versus “Sim”, neste caso) mas haver mérito de ambos os lados.

É mesmo uma matéria de consciência. Isto dá mais força à necessidade de, em virtude de “cada cabeça (e vivência) ter a sua sentença”, ouvir-se a totalidade dos portugueses.

Mas não foram casos únicos de qualidade. Dentro do mesmo partido político, no caso, o PSD, houve boas defesas de posição para sentidos de voto diferentes.

Ouvimos um discurso elevado e humanista do deputado André Coelho Lima a sustentar o seu “Sim” versus o intenso discurso do seu colega do PSD, António Ventura, que com elevação demonstrou o porquê do seu “Não”. Ambas declarações que também merecem ser ouvidas e avaliadas. 

Estes exemplos, e haveria mais, demonstram o enfoque personalista que muitos partidos ostentam na lapela política do seu dia a dia mas que agora, pasme-se, esquecem de aplicar.

O personalismo, esta via do humanismo com um século de debate, cuja aplicabilidade veio desde o filósofo francês Mounier mas é real na sociedade portuguesa pela prática e palavras de Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral ou Mário Soares (pela ala do socialismo personalista) defende sempre a inclusão da sociedade.

Esta filosofia moral que coloca o ser Humano como o principal foco existente, numa escala de importância, numa espécie de “centro do mundo”, em matérias de consciência (sobretudo nesta escala), foi opostamente defendida de quem segrega um referendo. Alguns até se afirmaram “personalistas” e “humanistas” mas só nas palavras porque, na prática, refutam a opinião da sociedade.

Reitero que a questão não se prende numa esperança de que os portugueses rejeitem o que os seus agentes políticos decidiram. Prende-se numa validação superior, por todo um país, no que os seus representantes querem legislar.

Ninguém sabe – ao contrário das “sabedoras palavras” do BE – o que pensa a globalidade das 11 milhões de consciências portuguesas.

A discussão de consciências pessoais deverá ser sempre com base na sociedade portuguesa. E, sobre a Eutanásia, só se ganharia em incluir a validação popular de quem também tem consciência.

 

Carlos Gouveia Martins


O que 223 decidiram por 10.810.674 portugueses


Eutanásia. Não há outro assunto que mais relevância tenha para o comum e informado português do que aquilo que se debateu, ontem, sobre a despenalização da morte assistida na Assembleia da República.


A Eutanásia, esse tema que o Parlamento dividiu entre votos de “Sim” e de “Não” e que o país continua sem debater minimamente para saber qual será então a estrada que politicamente escolhemos percorrer.

Primeiro, mesmo antes do que muito se ouviu, dizer que é natural e legal que o Parlamento tenha competência para legislar esta matéria. É legal, não se invente mais. Não há forma séria de se questionar as competências políticas que os deputados à Assembleia da República têm e, sendo honesto intelectualmente, quem o fizer presta um mau serviço ao respeito por este órgão de soberania nacional.

Não refuto que há legalidade dos 230 representantes, democraticamente eleitos, decidirem o trajeto político sobre qualquer matéria que diga respeito aos portugueses. Aos portugueses todos mesmo. Mas, em consciência sabemos que matérias de igual consciência pessoal carecem de, isso mesmo (pasme-se!), uma amplitude de consciências. Com dúvidas? Se cada consciência vale o mesmo, devemos ter todas as consciências a “falar” porque a de qualquer deputado não representa a minha nem a sua.

Sem dúvida, pressão religiosa ou partidária, uma matéria que é inclusiva de qualquer vida e não exclusiva de meia dúzia de agentes políticos, deveria ser alvo de referendo popular. Devia e deve.

Sem demagogias, este caminho de despenalizar a Eutanásia foi decidido ontem por 223 deputados (7 faltaram). Temos quase 11 milhões de portugueses inscritos na decisão democrática do nosso país. São 10.810.674 portugueses. Assim, sem demagogias, num assunto de consciência pessoal, os 223 deputados são apenas 0,0021% da globalidade da opinião portuguesa sobre a morte assistida.

Os revoltosos desta matemática dirão que são os representantes dos quase 11 milhões de portugueses. Correto, o voto em urna os coloca nesse patamar. Os favoráveis a esta mínima opinião de exclusão de opiniões dirão que só foram sufragados e escolhidos por 48% da sociedade portuguesa porque apenas votaram 5.251.064 portugueses do universo de 10.810.674. Também têm razão. É que nem assim há consenso sobre a consensualidade desta aprovação da despenalização da Eutanásia. Representam, estes 223 deputados, muito pouco do que querem decidir. Excluímos neste debate 99,9979% das consciências do nosso país.

Não terei nunca a “sabedoria” e “poder de futurologia” da deputada Mariana Mortágua que, em pleno debate parlamentar de ontem, afirmou que a aprovação da despenalização da Eutanásia era o que uma “clara maioria dos portugueses” queria. Não tenho esse poder de «adivinhação».

Não podemos entender ou politizar algo tão sério, dizendo que o referendo popular iria servir apenas para rejeitar a vontade de despenalizar o que os deputados aprovaram. Mas também se torna curioso que, se se julga que a maioria dos portugueses entende ser esse o caminho, o “Sim”, que os subscritores dos cinco projetos de Lei não queiram ver as suas propostas reiteradas e superiormente validadas por todo o país. Se acham que Portugal decidiria inequivocamente pelo “Sim”, de que esperam?

Pelo menos, ao BE diretamente, a julgar pela declaração de certeza de Mariana Mortágua, deveria propor imediatamente um referendo. A aprovação popular iria dar mais força ao seu projeto de Lei. Ganhava a democracia e era reforçada a vontade conjunta entre sociedade e poder político.

Em rescaldo, todos os cinco projetos de Lei para a despenalização da Eutanásia, elaborados pelo PS, BE, PEV, PAN e Iniciativa Liberal, foram aprovados na Assembleia da República. Em média, dentro dos 223 deputados presentes, foram apenas 86 aqueles que se demonstraram contra votando “Não”. Agora, e legalmente correto, deu-se aval para dar continuidade ao processo legislativo sobre a morte assistida.

Este processo e importante debate de sociedade, independentemente da votação de uma parte dos portugueses na sessão plenária da Assembleia da República de ontem, é assente em várias premissas que os mais facciosos tardam em aceitar.

Primeiro, não é uma matéria ideológica. Nem pode ser. A Eutanásia não é bandeira de Esquerda nem é de Direita.

Vejamos duas posições, ambas de qualidade superior, antagónicas no sentido de voto mas coincidentes na visão ideológica de – neste caso – serem de Esquerda.

O PCP e um deputado do PS. Ambos defensores de uma visão política de Esquerda para a sociedade portuguesa.

A posição e respetiva justificação do voto “Não” por parte dos comunistas – cuja declaração oficial do Partido merece atenção e leitura atenta dos interessados pela sua pertinência e seriedade que possui – e um brilhante discurso favorável ao “Sim” do deputado socialista Alexandre Quintanilha. Ambos de Esquerda, ambas posições sérias mas em lados opostos.

É possível haver mérito e bons argumentos, neste caso duas excelentes prestações, que sejam afetos ao “Sim” ou ao “Não” neste debate que não é de hoje e que não acabou ontem no Parlamento.

Na vida política deve-se avaliar, independentemente da posição pessoal ou consciência de cada um, sem facciosismos, a qualidade de argumentos. O PCP e, neste caso, o PS por via de um dos seus deputados, demonstraram que a Esquerda ideológica pôde diferir na opinião (“Não” versus “Sim”, neste caso) mas haver mérito de ambos os lados.

É mesmo uma matéria de consciência. Isto dá mais força à necessidade de, em virtude de “cada cabeça (e vivência) ter a sua sentença”, ouvir-se a totalidade dos portugueses.

Mas não foram casos únicos de qualidade. Dentro do mesmo partido político, no caso, o PSD, houve boas defesas de posição para sentidos de voto diferentes.

Ouvimos um discurso elevado e humanista do deputado André Coelho Lima a sustentar o seu “Sim” versus o intenso discurso do seu colega do PSD, António Ventura, que com elevação demonstrou o porquê do seu “Não”. Ambas declarações que também merecem ser ouvidas e avaliadas. 

Estes exemplos, e haveria mais, demonstram o enfoque personalista que muitos partidos ostentam na lapela política do seu dia a dia mas que agora, pasme-se, esquecem de aplicar.

O personalismo, esta via do humanismo com um século de debate, cuja aplicabilidade veio desde o filósofo francês Mounier mas é real na sociedade portuguesa pela prática e palavras de Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral ou Mário Soares (pela ala do socialismo personalista) defende sempre a inclusão da sociedade.

Esta filosofia moral que coloca o ser Humano como o principal foco existente, numa escala de importância, numa espécie de “centro do mundo”, em matérias de consciência (sobretudo nesta escala), foi opostamente defendida de quem segrega um referendo. Alguns até se afirmaram “personalistas” e “humanistas” mas só nas palavras porque, na prática, refutam a opinião da sociedade.

Reitero que a questão não se prende numa esperança de que os portugueses rejeitem o que os seus agentes políticos decidiram. Prende-se numa validação superior, por todo um país, no que os seus representantes querem legislar.

Ninguém sabe – ao contrário das “sabedoras palavras” do BE – o que pensa a globalidade das 11 milhões de consciências portuguesas.

A discussão de consciências pessoais deverá ser sempre com base na sociedade portuguesa. E, sobre a Eutanásia, só se ganharia em incluir a validação popular de quem também tem consciência.

 

Carlos Gouveia Martins