EUA. Escândalo de abuso sexual leva escoteiros a abrir falência

EUA. Escândalo de abuso sexual leva escoteiros a abrir falência


Centenas de processos de abuso sexual ensombram a organização. O número de vítimas ascende a 12 mil e as compensações podem chegar aos mil milhões de dólares.


Os Escoteiros da América celebraram no passado dia 8 de fevereiro 110 anos de existência. Mas ao longo de décadas acredita-se que mais de 7800 chefes da organização tenham estado envolvidos em casos de abuso sexual a rapazes, perfazendo, no mínimo, um total de 12 mil vítimas, segundo números revelados no ano passado. É neste contexto tenebroso e de vaga de processos interpostos contra a organização que os Escoteiros da América apresentaram falência esta terça-feira, no Delaware.

A organização estava a par das suspeitas, que remontam aos anos entre 1944 a 2016, tendo guardado ficheiros dos quase 8 mil voluntários afastados devido a acusações de abuso sexual, na sua sede no Texas, mantendo-os de forma propositada longe dos olhares do público. Os números foram revelados em abril de 2019 por uma especialista neste género de processos contratada pela própria organização para analisar os documentos. E nos últimos meses, segundo advogados, várias centenas de antigos escoteiros têm denunciado alegados autores de abuso sexual a crianças, que usaram os programas dos Escoteiros da América para o efeito, e que não se encontram nos referidos documentos.

Ao apresentar falência, a organização alegou, em carta aberta assinada pelo seu líder, Jim Turley, querer “assegurar” a compensação equitativa a “todas as vítimas de abuso” nos seus programas, através de um fundo de compensação às vítimas. “Nada é mais importante do que a segurança e proteção de crianças nos Escoteiros e estamos indignados por ter havido, em tempos, indivíduos que aproveitaram os nossos programas para abusar [sexualmente] crianças”, lê-se na carta.

“Em tempo algum permitimos de forma consciente que um autor [dos crimes] trabalhasse com a juventude e mandatamos todos os líderes, voluntários e funcionários, a nível nacional, a reportar imediatamente qualquer alegação de abuso às autoridades”, continua. “Queremos que saibam que acreditamos em vós, e que temos programas para pagar o vosso aconselhamento”.

 

Fundo pode ultrapassar mil milhões

Mas, segundo o New York Times, espera-se que o pedido de falência atrapalhe a prossecução do litígio e estabeleça um prazo para as vítimas poderem interpor um processo contra a organização. Indo ao tribunal de bancarrota, a organização põe um travão temporário nos processos, suspendendo-os. Os Escoteiros da América possuem mais de 261 conselhos em todo o país, que operam tropas locais e detêm ativos, incluindo terrenos em vários estados, segundo o Wall Street Journal. Diz o mesmo jornal que o passo dado esta terça-feira serve para proteger esses conselhos, que detêm cerca de 70% dos ativos da organização – os documentos apresentados ao tribunal de Delaware alistaram passivos no valor de mil milhões de dólares e ativos estimados em até 10 mil milhões, segundo a imprensa norte-americana.

Os problemas financeiros da organização adensaram-se depois dos estados de Nova Iorque, Arizona, Nova Jérsia e Califórnia terem aprovado leis, em 2019, no sentido de facilitar a interposição de processos por parte das vítimas que sofreram abusos há muitos anos, diz o Guardian. Por sua vez, os Escoteiros poderão ser obrigados a vender algumas das suas vastas propriedades, incluindo acampamentos e trilhos, de forma a angariar as quantias necessárias para criar um fundo para compensar as vítimas, cujo valor pode ultrapassar os mil milhões de dólares, refere o diário britânico.

Segundo o advogado de algumas centenas de vítimas, Paul Mones, estas qualificaram a bancarrota da organização como uma “tragédia”, temendo que não se faça a “merecida justiça”. “Estes jovens rapazes fizeram um juramento. Prometeram ser obedientes, prometeram apoiar os escoteiros e prometeram ser honrados. Muitos deles estão extremamente furiosos com o facto de não ter sido isso que aconteceu com eles e por os Escoteiros da América não terem agido como deviam”, declarou o advogado, citado pela CNN.

Escola de presidentes Formados em 1910, os Escoteiros da América são uma organização de grande influência nos EUA: entre os 110 milhões de jovens que por lá passaram contam-se os presidentes Bill Clinton, Gerald Ford e John F. Kennedy. O seu propósito, de acordo com a carta aprovada pelo Congresso e aprovada pelo Presidente Woodrow Wilson, em 1916: ensinar aos rapazes o patriotismo, incentivar a coragem e a autoconfiança. Mas pelo menos desde 1935 que este tipo de problemas assombra a organização, segundo um artigo do New York Times da época, que contava que os Escoteiros da América descreveram ter arquivos de centenas de chefes de escoteiros que foram rotulados como “degenerados”.

Vários processos interpostos contra a organização, nos últimos anos, alegam comportamentos padrão e de forma repetida: carícias, exposição a pornografia, e sexo oral ou anal forçado. Foi formado um grupo para organizar as vítimas, o Abused in Scouting, que agora representa cerca de 1800 sobreviventes, dos 14 aos 93 anos de idade – muitas dezenas de vítimas têm mais de 80. A maior parte dos casos remontam às décadas de 1960, 70 e 80.

O número de participantes nos Escoteiros da América tem diminuído exponencialmente nas últimas décadas. Dos 4 milhões de membros nos anos 1970 esse valor desceu para atuais cerca de 2,2 milhões de membros entre os 7 e 21 anos, e cerca de 1 milhão de voluntários. A organização sofreu um pesado golpe quando a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias (Mórmon) – durante décadas um dos maiores patrocinadores do escoteiros – decidiu abandoná-la, no dia 1 de janeiro, para favorecer os seus próprios programas do género. Para contrariar a quebra no número de participantes, os Escoteiros da América passaram a admitir raparigas. Mas há quem, entre as vítimas, defenda o seu fim ou a mudança radical na sua forma de funcionamento. “Providencia aos pedófilos acesso aos rapazes”, afirmou Robbie Pierce, 39 anos, ao New York Times. “Isso tem que parar. Não sei se isso quer dizer livrarmo-nos dos escoteiros ou alguma forma nova de fiscalização”, conclui a vítima.