Cláudia Andrade. Esfregar sal na ferida que somos

Cláudia Andrade. Esfregar sal na ferida que somos


Se há livros que podem justamente ser assinalados com destaque na nossa ficção recente, “Quartos de Final e Outras histórias” está entre eles. Assina-o Cláudia Andrade, um nome  ainda pouco escutado cuja voz exala a frescura agreste das urtigas a que a autora mandou a literatura


Quando o género é a poesia, dos novos nomes em afirmação é comum dizer-se que andam à procura da sua voz. Se  transitarmos  para o campo da ficção, o caso muda de figura. Mal se levanta do berço, o novel ficcionista, quantas vezes dependurado de uma referência clássica (espécie de isco em que o próprio mal chega a assentar o dente) tem logo voz, e das mais originais do nosso panorama literário, onde quase tudo se equivale. Se o escritor A não tem o talento do escritor B, compensa-o com o estatuto mediático que lhe chega através do berço; se está dele a milhas náuticas de distância e não dá duas braçadas narrativas sem a respiração do lugar-comum,  a imperícia  é compensada com piscina crítica aquecida. Sucede que como provou já, e com abundância de exemplos, João Pedro George, a badana e o bruáa  mediático são uma coisa e o conteúdo é outra.

Na larga maioria dos casos, esse conteúdo é o exacto avesso da prometida originalidade: ao cabo de poucas páginas já tiramos o número ao esquema,  já saltaram as convencionais parcelas que levam a uma soma de resultado previsível, canónico e  inane. E já nos enfadámos o suficiente com construções e novelos metaficcionais, bordados alusivos e proezas culturalistas por vezes de grande efeito e curto alcance. Uma sensaboria. Não há uma personagem marcante que se nos prenda à retina, um lance narrativo digno de registo, um clarão violento que faça alguma luz sobre o mundo por vir,  um pensamento que fique a ecoar,  uma frase feliz que valha a pena fixar. O que fica é a previsibilidade do palavreado, o ramerrão, a literatice e o desconsolo do já lido. Nos casos mais penosos, de uma confrangedora puerilidade criativa, fica-nos  o desconforto de estarmos perante uns balbúcios  que soam como uma habilidade menor, uma escrita-quase…

“Quartos de Final e Outras histórias” é daqueles livros que não devia aparecer nos escaparates sem uma atípica cinta, daquelas de enxotar leitores sensíveis, espíritos cândidos,  adeptos das belles letres que procuram na literatura consolo e gratificação imediata: “Não abra: há fracturas, feridas expostas, órgãos visíveis”. Basta abanar o livro e saltarão pulmões, corações mais ou menos funcionais, estômagos de fundo corrosivo, esófagos a arder, narizes fora da massa do crânio, cotovelos que se cravam em joelhos nus, olhos de tal modo esvaziados que se vêem lá dentro as paredes nuas,  outros “revirados até ao limiar da pálpebra”, lodos de entranhas, ressentimentos biliares. E há a “Vesícula da Poesia”, um brevíssimo conto de ironia crua. O conto de abertura lê-se com prazer igualmente amargo e anda à roda de uma infortunada mulher  que luta pela atenção do seu marido no dia do próprio casamento. Nunca chegaremos a 'ver' o vestido de noiva. Para Cláudia Andrade o importante não é o traje (e a literatura como acto de exteriores) mas a  estrutura base do traje – o corpo, que neste livro se autonomiza, na saúde e na doença, na juventude e na velhice, na força e na fragilidade.

Há muito que  Cláudia Andrade escreve para o eco morto da gaveta, facto que nunca lhe roubou  o prazer da escrita. Dir-se-ia que tem vida literária mas fez dela mais que um projeto de visibilidade. De quando em quando, troca a gaveta pela ranhura de um marco dos correios e envia os seus originais para concursos literários. Foi assim que em 2017 ganhou o Prémio Ferreira de Castro, sob o habitual pseudónimo Vitória F., que agora cai por insistência  do editor.

Anunciada pela Elsinore como “uma nova voz no panorama literário”, a autora de “Caronte à Espera” (romance cuja publicação está prevista para o próximo mês) surge-nos como um daqueles raros casos em que o retrato promocional – muitas vezes distorcido, piamente ampliado, farsante (acontece com enervante frequência) – se não acerta  com o perfil literário que descreve será apenas por comedimento. Cláudia Andrade é uma voz forte, densa, limpidamente agreste, intensa, trabalhada. Lexicalmente,  joga com o baralho todo, cartas altas e cartas que descem a registos que não desdenham o calão, e qualquer desconfiança sobre a riqueza da superfície verbal pode ser desfeita abrindo o livro ao acaso. Pressente-se-lhe a labuta: escrita e reescrita,  rasura e substituição, cálculo reajustado dos efeitos, das redes de palavras, prontas a galgar a cerca da literatice e da celebração inocente da ficção, trocadas por uma palpitação vital, uma visceralidade incomum. É certo que no conto “O Exilado” há um escritor que se põe a escrever sobre um escritor, mas depressa se angustia e envergonha até à medula: “já só os imbecis o fazem, não passa de um exercício de vacuidade, uma auto-referência redundante, presunçosa e redundante”. 

As imagens são um dos seus trunfos. E há algumas que, pela sua força, nos colonizam a memória. Como a da mulher “tão magra que o arredondar do corpo formava um ponto de interrogação”, a da prostituta de estrada “muito direita e cabisbaixa no sofá de orelhas, como uma bibliotecária cismática”  ou a do violador que investe contra um anjo, “estúpida galinha do céu”, e o anavalha “rasgando camada a camada o cetim alvo, como quem descascasse por vingança uma cebola odiada”.  

As suas personagens,  que ganham força pela exuberância dos seus instintos e impulsos,  vivem longe da literatura de salão,  essa à qual o literário se agarrou como ligadura à volta de uma ferida, impedindo a flexibilidade de movimentos. É difícil imaginá-las reunidas em torno de um piano de cauda:  uma noiva desesperada, quase sem “arquejo de esperança no túmulo do peito”; uma prostituta de estrada salva por uma rafeira abandonada que partilha com ela a condição de “fêmea sem sorte”; uma moribunda de falsas partidas; uma criança perfeitinha, mas só de frente; um poeta  de vida saudável e nada conveniente à biografia que dele se espera. Elas são a própria ferida, exposta, tratada a sal por um narrador que exerce sobre elas uma disciplina fria. As imagens acompanham: “Quando o médico o mandou chamar e, com gaguejos, se pôs a perseguir  própria cauda, foi ele próprio, Diógenes, quem lhe arrancou da boca o cancro e, abrindo com a unha esse anátema purulento, desembrulhou a morte como se de uma pastilha elástica se tratasse.” Cláudia Andrade não pretende indemnizar as suas personagens pelo seu sofrimento, nem o leitor pela sua dedicação. Não nos é oferecido um lugar aconchegado para depositarmos as nossas esperanças, simpatias, irritações, animosidades, porque essa é uma vantagem a que as personagens também não têm direito. A sua prosa não se envolve emocionalmente, age como o bom médico.  

Aos méritos narrativos da autora some-se ainda o de uma fluência de imaginação para levar a história ao lugar certo.  O lugar certo: lá,  onde o  canónico do conto tradicional não passa, onde o lugar-comum se esgarça e o viver habitualmente é desafiado, onde temas centrais da ficção, como o casamento  ou o estranho misterioso, são subvertidos. Mas algumas das melhores recordações que a leitura desta dúzia e meia de contos nos deixa são também aqueles momentos em que reconhecemos o talento de um escritor, não como função das suas intenções estruturais ou do seu prodigioso 'amiudar”, mas sim do que é ou não capaz de fazer com  um simples objecto. Por exemplo, uma lata de bolachas. Há quem veja numa lata de bolachas um mero recipiente. Há quem a tome como moeda de troca; foi o caso de Portugal, que pagou os direitos de publicação das histórias do Tintim com o envio de latas de bolachas (e de conservas) para o irmão de Hergé, então prisioneiro dos alemães num campo de concentração. Cláudia Andrade faz da lata de bolachas o centro de um momento épico. Acontece no conto “Bons Costumes”.  Um grupo de carpideiras com um longo rosário de pecados rodeia o leito de uma nonagenária moribunda. O  historial de falsas partidas da velha faz crescer a fome, tornada “coisa autónoma, viva, tensa”, visceral, como quase tudo neste livro. Os olhos pregam-se a uma lata de bolachas, de dificílima abertura: tentativas muitas, esforço vão, luta inglória, revezamentos, até que “uma mulher grande de antebraços heróicos – cuja acção  o narrador ironicamente descreve como quem exalta feitos de armas ou façanhas de cavalaria – avançou então como se para comandar uma chacina, prendeu a lata debaixo de uma axila e, num gesto só, decapitou o topo.”