É cíclico! No mundo dos cartoons, sempre que alguma comunidade religiosa se sente ofendida, o escândalo rebenta. Se o cartoonista tem o azar de se meter com os fundamentalistas islâmicos, as implicações podem mesmo redundar na morte do autor. Se os fanáticos chegam a decretar em nome de Alá uma fátua, sentença de morte, aos cartoonistas, as outras comunidades religiosas procuram a condenação pública dos artistas que as ofendem. Foi assim, por exemplo, com a comunidade católica, quando António desenhou o Papa João Paulo ii com um preservativo no nariz, ou com a comunidade judaica, quando o caricaturista fez o cartoon de Trump com um cão pela trela cuja cara era a do primeiro-ministro israelita.
Nas últimas semanas, a fava saiu a Vasco Gargalo e a Cristina Sampaio. Gargalo colabora com a Sábado, o Correio da Manhã e meios de comunicação internacionais, e em novembro do ano passado fez um cartoon que mostrava o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a colocar um caixão, coberto com a bandeira palestiniana, dentro de um crematório. Por cima deste podia ler-se: “Arbeit Macht Frei” (“O trabalho liberta”), frase que se encontra em Auschwitz, na entrada do campo de concentração nazi. Quando o publicou pela primeira vez, no site Cartoon Movement, o desenho passou algo despercebido. No entanto, quando voltou a publicá-lo, desta vez no seu Twitter pessoal, numa semana em que se celebrava o aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz e o acordo de paz entre Donald Trump e Benjamin Netanyahu, os ânimos inflamaram-se. “Surgiu uma perseguição de várias comunidades judaicas e israelitas que me acusaram de ser antissemita”, conta – acusações estas que chegaram ao Courrier International, jornal francês com que Vasco colabora. “Ainda não é oficial, mas tudo indica que vão retirar-me o prémio”, disse, referindo-se ao Plumes Libres, entregue ao melhor cartoon de imprensa, por um desenho publicado no dia da morte da brasileira Marielle Franco. A notícia foi dada como certa pelo jornal Ville de Strasbourg , mas o i questionou o Courrier International, não tendo recebido resposta.
“Os cartoonistas são a linha de frente de qualquer guerra”, diz Vasco Gargalo ao i. “São os alvos mais fáceis de abater, são carne para canhão”. Mas não tem estado sozinho. Foi no jornal Público que foi publicado o cartoon de Cristina Sampaio que mostra a bandeira do CDS-PP a transformar-se lentamente numa suástica – uma crítica às declarações de Abel Matos Santos, que teceu elogios a Salazar e criticou Aristides de Sousa Mendes. “Quando fiz o cartoon que descreve o risco de o CDS-PP se transformar num partido que defende ideias que evocam tempos sinistros da nossa história, sabia que iria provocar as mais diversas reações”, explica Cristina – reações essas que incluem um artigo de opinião publicado no Público, escrito por João Maria Condeixa, ex-dirigente nacional do CDS, que a acusou de “relativizar o nazismo e a extrema-direita”. “O papel do desenho satírico é justamente esse, agitar o pensamento caricaturando a realidade. É provocar incómodo”, defende a autora.
“Continuarei a trabalhar como sempre trabalhei”, reforça Cristina Sampaio. “Os meus desenhos são pensados e ponderados antes de serem feitos, e refletem a minha opinião”.
Continuar a marchar Quando questionado sobre as consequências que a retirada do prémio podia ter no seu trabalho, Vasco desvaloriza a decisão dos responsáveis do Courrier: “Para o meu trabalho, não me traz consequências nenhumas, o prémio não é importante para mim nesse sentido, não vou ter mais ou menos trabalhos por causa dele”. Mas não é esse, afirma, o cerne da questão. “Uma revista de referência internacional como a Courrier ceder a estas pressões e retirar assim o prémio é uma regressão e um atentado à liberdade de expressão e de imprensa”.
Cristina Sampaio, que publicou um cartoon “em solidariedade com Vasco Gargalo” no Público, saiu em defesa do colega: “Não podem existir assuntos tabu, mesmo que existam diferentes sensibilidades e formas de os abordar”. “É lamentável o facto de a Courrier International ter retirado um prémio atribuído a um desenho que o tinha, sem dúvida, merecido”.
Um homem que não é estranho a polémicas, António Antunes, um dos nomes maiores do cartoonismo em Portugal, e que também foi acusado de ser antissemita após o New York Times ter publicado um cartoon seu em que Donald Trump, retratado como um cego, aparece com um quipá (touca utilizada pelo povo judeu) e um cão-guia cuja cara é a de Benjamin Netanyahu, também saiu em defesa do colega.
“A questão do prémio ainda é pior do que no meu caso. Estão a elevar o poder de Israel e a pura e simplesmente crucificar um autor”, considera António. “E depois é a facilidade com que o embaixador de Israel em Portugal fala ao Presidente da República e ao primeiro-ministro [sobre este caso], mas não há uma única palavra sobre aquilo que justificou o cartoon: a ocupação selvagem de terra dos palestinianos. Essa, sim, é a questão de fundo”.
Vasco Gargalo é taxativo. “Se for [preciso ser] politicamente correto deixo de ser cartoonista. Não posso sê-lo. No meu trabalho, nunca vai funcionar, para isso vou fazer outra coisa qualquer que não seja cartoons ou lidar com informação”.
Os três cartoonistas reforçaram a sua vontade de continuar a trabalhar temas sensíveis e a pôr o “dedo na ferida”. Cristina Sampaio reforçou esta ideia com uma frase de alguém que morreu por lutar pela liberdade de expressão.
“O meu amigo Tignous, assassinado no massacre do Charlie Hebdo, escreveu um dia que ‘um desenho conseguido conduz ao riso. Um desenho muito bem conseguido conduz à reflexão. Se conduzir ao riso e à reflexão, então é um excelente desenho. Mas o melhor desenho de todos conduz ao riso e à reflexão e provoca uma certa vergonha. Se o leitor sente vergonha por se ter rido de uma situação grave, então esse desenho é magnífico, pois é aquele que perdura’”.