“Onde está Romeu?” Romeu está aqui, à nossa frente. Mas, diante de nós, responderá que não. Romeu? Romeu está algures por aí. No não-lugar em que John Romão, que depois de Virgens Suicidas, que ainda no mês passado levou à cena na Culturgest, colocou Romeu, Julieta e outras três das sete personagens de Romeu e Julieta que leva a partir desta noite ao palco da Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II. Romeu é João Cachola, Julieta, Mariana Monteiro, nesta sua estreia no teatro. Em noite de estreias (a da peça e a da atriz) também John Romão, o encenador, fará a sua: em Shakespeare. Para um texto em vertigem, o exercício foi de o acelerar ainda mais. Cortar personagens, sobrepor cenas, propor-nos uma redescoberta da figura da Ama em Mariana Tengner Barros – e de Frei Lourenço em Matamba Joaquim. Essa espécie de anjo da morte que pela noite trará o conforto por que anseiam estas personagens que, já antes daquela festa em que Romeu e Julieta hão de se conhecer, flutuavam entre estados que, à falta de uma designação fechada, John Romão colocou entre a vida e a morte. Talvez já à espera daquele que já sabemos à partida que será o seu fim.
Neste Romeu e Julieta, o Romeu e a Julieta não conseguem tocar-se – nem hão de conseguir ver-se. Uma estreia no teatro como Julieta, mas uma Julieta imóvel e a metros de um Romeu que também não tem como se mexer, não terá sido certamente a estreia no teatro que terá um dia imaginado.
Mariana Monteiro – Veem-se perifericamente. Mas não se tocam, é uma impossibilidade. Estamos numa impossibilidade, cada personagem está. Ainda ontem falava sobre isso com o João Cachola [Romeu]. Nunca pensei que no primeiro pisar de palco me acontecesse isto. Mas também esse é o desafio. Essa é a beleza deste espetáculo.
Poder-se-ia pensar, à partida, que tudo o que virá a partir desse dispositivo cénico com que nos deparamos será o texto, apenas o texto. Mas não. Pelo contrário, este é um espetáculo bastante físico.
MM – Até porque tivemos processos de ensaios em que construímos tudo antes de os dispositivos existirem.
John Romão – Passámos tudo à ação, estivemos na ação, com o corpo, a trabalhar com o corpo, e só depois é que veio o trabalho com esta limitação. Na verdade, qualquer ator trabalha sempre com limitações. Neste caso, são limitações de movimento. Não diria físicas, porque o corpo está lá.
MM – E bem presente e bem consciente. Para mim o mais interessante foram os exercícios de improviso, que vão trazendo estados, vão trazendo aquela angústia. Foi muito engraçado para mim poder experimentar. E ir a esses sítios foi importante para depois, quando colocámos o texto em cima [do dispositivo cénico em que Romeu, Julieta e outras três personagens estão imóveis, como que a levitar]. Não somos seres que estão completamente acordados, não. Houve uma imagem que me ajudou bastante que foi a Julieta dentro de um caixão, a imagem de alguém que é enterrado vivo. A partir daí, fomo-nos deixando contaminar. O que sinto é que há em nós os cinco [Mariana Monteiro, João Cachola, João Arrais, João Jesus e Rodrigo Tomás] que estamos na imobilidade uma espécie de entidade. Tanto é que as figuras da Ama e do Frei Lourenço são figuras exteriores. Muito exteriores.
JR – Costumo dizer até que é o espetáculo mais físico que já fiz. Os atores não estão deitados simplesmente [sobre as estruturas invisíveis que criam a ilusão de que estão a levitar]. Há ali um trabalho físico na relação com o chão e com o equilíbrio que estão também a trabalhar, que não é muito evidente – o objetivo é que não seja. Essa limitação é também uma ferramenta para eles. Claro que a partir daí damos muito mais valor a outras qualidades do trabalho do ator, que neste caso têm muito mais a ver com a voz, com a interioridade, a emocionalidade e todo o imaginário…
A impossibilidade de se expressarem pela via física, obriga-os a irem à procura de outros caminhos.
JR – Há movimento de mãos e há muita interação de outros corpos com eles, porque há três corpos que estão verticais. A Mariana Tengner Barros, que é a Ama, o Matamba Joaquim, que é o Frei Lourenço, e o Baltazar/Boticário, pelo Rui Paixão, num duplo papel. Os corpos que estão neste estado de suspensão interagem entre si, mas com esta limitação espacial e física. É um trabalho de imaginação e de interioridade muito, muito forte, que é muito bom de ver porque, de repente, há uma emocionalidade muito à flor da pele.
Que vem como a única forma de exteriorizar o que quer que seja. Não há outra maneira.
JR – É a única maneira. E cria uma consciência total de si e da sua condição. Daquela limitação e daquela impossibilidade.
MM – E da inevitabilidade das coisas. Realmente não temos poder ali. Sobre nada. Ficamos super vulneráveis.
Isso aplica-se os próprios atores, não apenas as personagens. Esta ideia de estar de frente para um Romeu que mal consegue ver, e ao qual não consegue chegar, ajuda-a a chegar ao lugar da Julieta?
MM – Muito. O John criou esta imagem dos tais mortos-vivos…
Porque é como se estivessem todos de facto, logo desde o início, prontos para a morte. Entre a vida e a morte. Foi a interpretação mais imediata que me surgiu dessa imagem.
JR – Estou muito contente com esta imagem porque tem mesmo esse poder dialético entre estados que já conhecemos. Propõe um estado desconhecido, um território de que falamos muito que é um não-lugar. Não podemos dizer concretamente o que aquele corpo está a fazer ou em que lugar aquele corpo está: está precisamente entre a verticalidade e a horizontalidade, entre o céu e a terra, entre a vida e a morte. E nesses estados intermédios – até falo muito de corpo-intermédio – não podemos dizer o que são, não podemos concretizar. São essa dúvida, esse questionar permanente que este elemento de ilusionismo incute no espetador, que é obrigado ao longo da hora e meia de espetáculo a reescrever permanentemente aqueles corpos à luz das palavras de Shakespeare.
MM – Acho que há um paradoxo constante na peça: há uma corrida para o amor ao mesmo tempo que há uma corrida para a morte. Quase como uma sobreposição entre uma vontade de amar e uma vontade de morrer, como se fossem dar ao mesmo lugar. Por outro lado, são personagens muito transgressoras, que constantemente querem o que é proibido. Ao quererem o que é proibido, e estando nós sem qualquer capacidade para exprimir sentimentos a não ser falar, gritar, traz muito mais interioridade. Às vezes diz-se “estás a fazer muitos gestos, não faças tantos gestos porque isto está a perder-se”. Aqui é o oposto: está tudo aqui [coloca as mãos no peito] e de repente… [faz um gesto em direção à boca]. E, de facto, a nossa imobilidade – com a velocidade a que plasticamente está construído [o espetáculo] – traz exatamente aquilo que estamos a viver hoje em dia, que é estarmos em todo o lado, e não estarmos em lado nenhum. Que conversa é que existe olho no olho hoje em dia, de facto? No fundo o que acontece entre nós em palco é o que está a acontecer hoje em dia.
O que nos tem acontecido enquanto sociedade.
JR – A visão de amor romântico à época também era muito dualista: muito entre o ou vivo ou morro, ou estou presente ou estou ausente. Hoje vive-se muito mais esse hibridismo do estado físico do corpo, com esse questionamento. Segundo a lógica da Física, tudo o que é preciso acontecer tem que ter um lugar. E hoje já não é tão certo que seja isso que acontece. Se estou a falar com alguém por WhatsApp, estamos a falar realmente, mas isso tem lugar? Não temos uma resposta exata para isso. E estes corpos refletem também essa relação que temos com a tecnologia e os meios de comunicação atuais, em que os corpos têm esse questionamento entre a ausência e a presença, mas também reporta para um sentido mais espiritual, se quisermos. Mais mágico, até: estes corpos podem não estar ali e estar a caminho de outra coisa qualquer. Esta imagem vem-me sobretudo ao pensar no corpo de Romeu. Há três cenas no texto de Shakespeare em que perguntam “onde é que está Romeu?”. Para mim é muito bonito quando, na primeira cena que têm juntos, ele [Romeu] responde ao Benvólio “Romeu não está aqui”.
MM – “Está algures por aí”.
JR – E esse estado para mim é “que sítio é este onde está Romeu?”.
No lugar em que muitos de nós estamos tantas vezes.
JR – Dramaturgicamente, ele responde isso porque não se identifica com aquele território – hoje já não vivemos tanto essa questão geopolítica do território em que pertenço a este sítio, a esta terra, hoje somos cada vez mais nómadas e corpos híbridos e intermédios. No caso dela, da Julieta, há também essa não identificação à terra porque ela não se encaixa, não se identifica com o material, com o capital.
Procura transcender tudo isso.
JR – Sim. Com essa ferida, esse local que eles encontram é esse lugar que ainda não tem nome. Tal como esta imagem física permanente não tem nome. Não podemos dizer o que é porque ele não existe. Esse local que não tem nome é a morte que eles encontram. É quando deixam as capas todas. A morte é sempre visto como local de refúgio. Ela diz sempre que, se tudo correr mal, tem sempre a hipótese de morrer.
MM – Porque não é a pior hipótese. A pior hipótese é estar em vida como estou.
Presa.
JR – Essa imagem consegue dialogar sempre com tudo o que não tem um nome ainda.
MM – Também se fala muito dessa questão do nome. Uma coisa que recebe uma denominação altera-se porque tem essa denominação? O que é que é isso de eu ser uma Capuleto e ele ser um Montecchio? Isto aplica-se a um estrato social ou a outra coisa qualquer. Acho que é uma peça extremamente social e que tem de facto muito de contemporâneo na abordagem com que é apresentada.
Essa dimensão contemporânea não nos é dada apenas pela forma. O texto é o texto original de Shakespeare, com adaptações cirúrgicas – muito pequenas mas fundamentais para o trazer para os dias de hoje. Ainda assim, o texto continua o texto.
JR – Isso era muito importante para mim. Na pesquisa que tenho vindo a fazer desde há anos para os meus espetáculos foco-me muito na relação com o movimento, a velocidade, a presença do corpo, etc., muito à luz do Paul Virilio, arquiteto, urbanista e pensador francês que tenho estudado ao longo do tempo. E aqui consigo trabalhar isso de uma forma mais evidente, essa questão da velocidade.
Este Romeu e Julieta é muito rápido.
JR – O texto tem já essa dinâmica muito rápida na sucessão dos acontecimentos – eles conhecem-se, querem casar-se logo a seguir, no dia seguinte já se estão a casar… Esta vertigem da juventude era o sítio perfeito para poder trabalhar isto de uma forma muito mais clara. Então, o que fiz foi tornar o texto ainda mais rápido do que aquilo que ele é. Eliminando, por exemplo, as personagens adultas – os pais, as figuras que representam o poder e, que de alguma forma, também travam a sucessão imediata de alguns acontecimentos. Sem essas personagens, a velocidade é ainda mais vertiginosa, é ainda mais rápido.
As personagens ficam aqui reduzidas a estas cinco, mais três (quatro).
MM – É a juventude. Tirando a Ama…
JR – … e o Frei Lourenço, que são aqueles que agem e os que eles utilizam como ferramentas para agirem.
Já no texto original funcionam assim. Aqui, é como se assistíssemos à materialização física disso.
JR – Eles acabam por funcionar também como avatares dos corpos que estão ali.
MM – Ela faz tudo o que eu não posso.
JR – A relação da Ama com a Julieta, por exemplo, é muito engraçada.
Há cenas em que duvidamos sobre se a Ama e o Frei Lourenço são a Ama e o Frei Lourenço ou se são Julieta e Romeu fora dos seus corpos aprisionados. Numa espécie de “se eu pudesse…”
JR – Exatamente. A escolha da Mariana Tengner Barros para Ama não é a escolha mais evidente. Interessa-me muito esta confusão: elas são amigas, são namoradas, são irmãs, são a Julieta e a Ama?
São a mesma pessoa?
JR – São o quê? Interessava-me também o eliminar desse estereótipo de a Ama tem de ser uma mulher de 50 anos e gorda, baixa e tonta. Esse lado popular, da personagem-tipo, quis também eliminá-lo.
E a escolha do Matamba para Frei Lourenço segue a mesma lógica.
JR – Sim. Ele tem uma força e uma presença incríveis, mas tem sobretudo uma calma muito bonita. E uma voz… para mim ele é realmente esse leito do conforto para as personagens do Romeu e Julieta. Quase como um pai, um pai espiritual, mas também alguém que é uma espécie de anjo da morte. Ele que conhece esses estados espirituais entre a vida e a morte é quem pode utilizar as armas para proveito religioso, no sentido em que está a escolher o melhor. O melhor para cada um deles.
Romeu e Julieta é uma estreia para a Mariana Monteiro no teatro, mas também uma estreia para o John em Shakespeare.
JR – Em 2011 fiz um workshop na Bienal de Teatro de Veneza com o Romeo Castellucci, como assistente dele em que, numa das sessões, ele propôs trabalharmos só com textos de Shakespeare e deixou-me fazer também o exercício. Cada um tinha um texto diferente, eu fiquei com o Romeu e Julieta, e tínhamos de pensar de um dia para o outro numa possibilidade de encenação. Esse foi o meu primeiro embate, forçado, digamos assim, porque nunca tinha pensado, nunca tinha sequer tido o desejo de trabalhar Shakespeare. Mas foi uma experiência que me marcou muito. Não quis desde essa altura fazer Shakespeare, nunca tive esse impulso. Até hoje. Quando surgiu a hipótese de fazer um espetáculo aqui para a Sala Garrett para mim foi a resposta imediata: Romeu e Julieta. Achei que era o espaço ideal e o momento ideal também para enfrentar este texto, onde encontrei a possibilidade de trabalhar estes conceitos que já tenho vindo a explorar e a trabalhar. Não o faço só porque acho que é um belo, texto, que é. Certamente haverá um público que vem à procura da versão mais tradicional. Mas a mim só me interessa trabalhar com um produto cultural como este se sei que tenho espaço para operar uma outra visão.