Onde está o líder?


É isso que esse líder tem de fazer: focar-se na Constituição, retomar o processo legislativo de 1998, beber o debate da sociedade civil nos últimos cinco anos.


Se um líder político, em Portugal, agarrar a sério no tema do sistema eleitoral para a Assembleia da República, conduzindo a reforma até ao fim, ficará na história democrática do país.

Poucos outros temas servem esta profecia. Sim, certamente o equilíbrio duradouro das finanças públicas, não apenas pontual. Sim, com certeza políticas continuadas de crescimento económico ambicioso, apontadas a duas ou três décadas consecutivas, de 4% ao ano ou acima, fazendo-nos não só convergir com a média europeia mas sair, finalmente, da cepa torta e chegar-nos aos lugares da frente, largando de vez os bancos de trás. Mas, no plano político, a reforma eleitoral é a mãe de todas as reformas, aquela que, operando no coração do sistema político, irradiaria maior qualidade, legitimidade e institucionalidade; e aquela que pode garantir também, pela maior consistência do sistema político e maior maturidade do sistema partidário, o sólido suporte transpartidário e a continuidade daquelas outras políticas financeiras e económicas.

Dirão: ninguém quer. Respondo: querem os cidadãos. E alguns políticos também. Aliás, é esse mesmo clima aparente de “ninguém quer” que constitui a oportunidade de um grande líder: visão e determinação. Quem ler bem, com cuidada atenção, as actas do debate parlamentar da petição “Legislar o poder de os cidadãos escolherem e elegerem os seus deputados”, no plenário da Assembleia da República, em 20 de Dezembro passado, percebe que a porta não ficou trancada e a oportunidade está aberta. Será preciso, pelo menos, um líder para arrancar. Porventura, dois líderes. Outros, para acompanhar e seguir.

Não serve uma reforma qualquer. É claro que não é uma cosmética, nem cócegas no que temos. Estamos a falar não só de um assunto muito sério mas do mais sério dos nossos assuntos políticos: a nossa democracia, a qualidade da democracia, a reconciliação dos cidadãos com a participação democrática. Só interessa a reforma eleitoral para que aponta a Constituição desde 1997. É isso que esse líder tem de fazer: focar-se na Constituição, retomar o processo legislativo de 1998, beber o debate da sociedade civil nos últimos cinco anos.

Esse líder, de que Portugal precisa, teria de marcar em dez linhas sucessivas.

Primeiro, apontar ao problema do sistema eleitoral, à beira da ruptura. A abstenção nas legislativas já ultrapassou metade dos eleitores em 2019. São mais os que não votam (51,4%) do que os que votam (48,6%). Mais de 5,5 milhões não quiseram votar: não confiaram, não acharam que valesse a pena. Esta doença, que é antiga, vem contaminando todas as outras eleições, com taxas de absentismo muito altas. Até as últimas presidenciais, pela primeira vez numa eleição de primeiro mandato, já mostraram mais eleitores a não votar do que a votar.

Segundo, pôr à frente servir a cidadania e os seus direitos, em vez dos partidos políticos e os seus interesses. É esta ruptura de mentalidade que o líder tem de transmitir. Até hoje, a reforma não se fez porque os partidos põem em primeiro lugar o que julgam ser do seu interesse. A reforma não prejudica ninguém, serve todos. Mas têm medo do desconhecido. Lembram-me, quando criança, aqueles que estacavam diante duma escada rolante e tinham medo de subir aquela escada que subia sozinha. Não tenham medo! É melhor para todos, juro.

Terceiro, marcar que a intervenção a fazer seria para tratar a doença, não para responder aos sintomas, mascarando a doença. Há quem queira administrar umas mezinhas para ver se a abstenção baixa. A abstenção não é problema, é apenas o sintoma da doença. Se tratarmos a doença, a abstenção enorme desaparece. Não podemos dar analgésicos para tirar as dores de cabeça e o doente vir a morrer de um tumor cuja sintomatologia se mascarou.

Quarto, explicar que servir a cidadania, correspondendo às suas aspirações, é a única via para salvar os partidos, todos os partidos, repondo o seu prestígio democrático. Os cidadãos cansaram-se do funcionamento dos partidos, de como os enganam na escolha dos candidatos, em ideias e promessas por que ninguém responde, do muito baixo grau de escrutínio. A participação nos partidos também baixou muito. Só uma reforma destas devolve autenticidade à democracia, restitui seiva à vida partidária e restaura nos partidos o prestígio e a respeitabilidade que devem ter.

Quinto, mostrar que chegou a hora de seguir as vias que a Constituição abriu para melhorar o sistema eleitoral ao encontro dos eleitores e do poder dos cidadãos. Alguém acredita na saúde de um país que guarda na Constituição, como prateleira em vez de fonte, uma reforma política fundamental que, 23 anos depois (!!!), ainda está por fazer? Está na hora.

Sexto, esclarecer que o sistema misto, com círculos plurinominais (onde se vota em listas com vários candidatos) e uninominais (onde se vota num só candidato), não é outro sistema de apuramento dos resultados, mas o sistema de representação proporcional como temos hoje. Na verdade, o sistema mantém-se proporcional, como hoje. No duplo voto que cada cidadão tem (no partido e no deputado), o voto que determina a composição da Assembleia é o voto no partido, tal como hoje. Aqui, nada mudaria. A composição por cores políticas da Assembleia seria provavelmente a mesma, ressalvados apenas os acertos que houvesse que fazer no círculo nacional para garantir uma proporcionalidade mais justa.

Sétimo, desmistificar e afastar os fantasmas que, com falsidade, se põem a dançar à volta das candidaturas uninominais, a fim de tentar enganar as pessoas e comprometer a reforma, mantendo tudo na mesma e continuando os que tudo controlam a escolher e a comandar por detrás da cortina. Os candidatos uninominais (que podem também figurar nas listas) qualificam-se apenas para, ganhando a votação uninominal, serem eleitos à frente dos das listas do respectivo partido (porque foram directamente escolhidos) e dentro da quota partidária resultante da votação plurinominal. Os candidatos uninominais são tão do partido como todos os outros, integram uma candidatura nacional colectiva e são escolhidos racionalmente.

Oitavo, explicar, com base na sua própria experiência partidária antes e depois de ser líder, que a possibilidade da escolha uninominal pelos eleitores é a mudança fundamental que se opera na cultura do sistema de candidaturas e que a faz evoluir positivamente, mantendo a racionalidade orgânica que é função dos partidos e coligações assegurarem. O que a competição uninominal faz é favorecer que os partidos escolham para candidatos aqueles ou aquelas que sejam os melhores no conceito do seu eleitorado e da comunidade em geral. E esta é toda a mudança que se comunica à formação de todas as candidaturas. Se o partido se enganar ou quiser enganar, o eleitorado pode sancioná-lo, coisa que hoje não acontece. Esta a diferença. Hoje, é comer e calar. Por isso, o sistema tem descido até tão baixo.

Nono, assumir a linha da frente, liderando a ampliação dos consensos numa reforma para todos, melhorando a proposta, mas sem nunca comprometer a transformação fundamental (sistema misto com círculos uninominais/plurinominais e círculo nacional de compelação) que reconcilia a cidadania com a democracia. A reforma carece de liderança esclarecida e determinada do primeiro ao último dia. Mas terá prémio, um grande prémio.

Décimo, preparar, com exemplar independência e imparcialidade, como tem sido – há que o reconhecer – a tradição portuguesa desde 1975, a convocação das primeiras eleições pelo modelo da representação proporcional personalizada, uma nova grande festa da democracia, como as constituintes ou as primeiras eleições legislativas de 1976.

Será extraordinário ver a campanha eleitoral a irradiar por todo o país e aí se enraizar, nos debates localizados de vários duelos uninominais. Já não será apenas aquela coisa distante, muito espectáculo, mas lá longe, do líder de cada partido com a televisão atrás. Será extraordinário ver os eleitores a poderem debater com os candidatos na sua proximidade e estes poderem realmente comprometer-se e responsabilizar-se. Será extraordinário ver as pessoas a afluírem massivamente às urnas e fazerem-no, com alegria, para escolher directamente, pela primeira vez, deputado e partido, sem afectarem o peso relativo das correntes políticas.

O líder que o fizer entrará na História. O novo sistema virá para ficar, podendo sofrer os ajustes que a prática aconselhe. Todos reconhecerão – e agradecerão – quem tenha sido responsável por quebrar o galho e abrir a Portugal e à democracia as portas do futuro: democracia com cidadania, democracia de qualidade.

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Onde está o líder?


É isso que esse líder tem de fazer: focar-se na Constituição, retomar o processo legislativo de 1998, beber o debate da sociedade civil nos últimos cinco anos.


Se um líder político, em Portugal, agarrar a sério no tema do sistema eleitoral para a Assembleia da República, conduzindo a reforma até ao fim, ficará na história democrática do país.

Poucos outros temas servem esta profecia. Sim, certamente o equilíbrio duradouro das finanças públicas, não apenas pontual. Sim, com certeza políticas continuadas de crescimento económico ambicioso, apontadas a duas ou três décadas consecutivas, de 4% ao ano ou acima, fazendo-nos não só convergir com a média europeia mas sair, finalmente, da cepa torta e chegar-nos aos lugares da frente, largando de vez os bancos de trás. Mas, no plano político, a reforma eleitoral é a mãe de todas as reformas, aquela que, operando no coração do sistema político, irradiaria maior qualidade, legitimidade e institucionalidade; e aquela que pode garantir também, pela maior consistência do sistema político e maior maturidade do sistema partidário, o sólido suporte transpartidário e a continuidade daquelas outras políticas financeiras e económicas.

Dirão: ninguém quer. Respondo: querem os cidadãos. E alguns políticos também. Aliás, é esse mesmo clima aparente de “ninguém quer” que constitui a oportunidade de um grande líder: visão e determinação. Quem ler bem, com cuidada atenção, as actas do debate parlamentar da petição “Legislar o poder de os cidadãos escolherem e elegerem os seus deputados”, no plenário da Assembleia da República, em 20 de Dezembro passado, percebe que a porta não ficou trancada e a oportunidade está aberta. Será preciso, pelo menos, um líder para arrancar. Porventura, dois líderes. Outros, para acompanhar e seguir.

Não serve uma reforma qualquer. É claro que não é uma cosmética, nem cócegas no que temos. Estamos a falar não só de um assunto muito sério mas do mais sério dos nossos assuntos políticos: a nossa democracia, a qualidade da democracia, a reconciliação dos cidadãos com a participação democrática. Só interessa a reforma eleitoral para que aponta a Constituição desde 1997. É isso que esse líder tem de fazer: focar-se na Constituição, retomar o processo legislativo de 1998, beber o debate da sociedade civil nos últimos cinco anos.

Esse líder, de que Portugal precisa, teria de marcar em dez linhas sucessivas.

Primeiro, apontar ao problema do sistema eleitoral, à beira da ruptura. A abstenção nas legislativas já ultrapassou metade dos eleitores em 2019. São mais os que não votam (51,4%) do que os que votam (48,6%). Mais de 5,5 milhões não quiseram votar: não confiaram, não acharam que valesse a pena. Esta doença, que é antiga, vem contaminando todas as outras eleições, com taxas de absentismo muito altas. Até as últimas presidenciais, pela primeira vez numa eleição de primeiro mandato, já mostraram mais eleitores a não votar do que a votar.

Segundo, pôr à frente servir a cidadania e os seus direitos, em vez dos partidos políticos e os seus interesses. É esta ruptura de mentalidade que o líder tem de transmitir. Até hoje, a reforma não se fez porque os partidos põem em primeiro lugar o que julgam ser do seu interesse. A reforma não prejudica ninguém, serve todos. Mas têm medo do desconhecido. Lembram-me, quando criança, aqueles que estacavam diante duma escada rolante e tinham medo de subir aquela escada que subia sozinha. Não tenham medo! É melhor para todos, juro.

Terceiro, marcar que a intervenção a fazer seria para tratar a doença, não para responder aos sintomas, mascarando a doença. Há quem queira administrar umas mezinhas para ver se a abstenção baixa. A abstenção não é problema, é apenas o sintoma da doença. Se tratarmos a doença, a abstenção enorme desaparece. Não podemos dar analgésicos para tirar as dores de cabeça e o doente vir a morrer de um tumor cuja sintomatologia se mascarou.

Quarto, explicar que servir a cidadania, correspondendo às suas aspirações, é a única via para salvar os partidos, todos os partidos, repondo o seu prestígio democrático. Os cidadãos cansaram-se do funcionamento dos partidos, de como os enganam na escolha dos candidatos, em ideias e promessas por que ninguém responde, do muito baixo grau de escrutínio. A participação nos partidos também baixou muito. Só uma reforma destas devolve autenticidade à democracia, restitui seiva à vida partidária e restaura nos partidos o prestígio e a respeitabilidade que devem ter.

Quinto, mostrar que chegou a hora de seguir as vias que a Constituição abriu para melhorar o sistema eleitoral ao encontro dos eleitores e do poder dos cidadãos. Alguém acredita na saúde de um país que guarda na Constituição, como prateleira em vez de fonte, uma reforma política fundamental que, 23 anos depois (!!!), ainda está por fazer? Está na hora.

Sexto, esclarecer que o sistema misto, com círculos plurinominais (onde se vota em listas com vários candidatos) e uninominais (onde se vota num só candidato), não é outro sistema de apuramento dos resultados, mas o sistema de representação proporcional como temos hoje. Na verdade, o sistema mantém-se proporcional, como hoje. No duplo voto que cada cidadão tem (no partido e no deputado), o voto que determina a composição da Assembleia é o voto no partido, tal como hoje. Aqui, nada mudaria. A composição por cores políticas da Assembleia seria provavelmente a mesma, ressalvados apenas os acertos que houvesse que fazer no círculo nacional para garantir uma proporcionalidade mais justa.

Sétimo, desmistificar e afastar os fantasmas que, com falsidade, se põem a dançar à volta das candidaturas uninominais, a fim de tentar enganar as pessoas e comprometer a reforma, mantendo tudo na mesma e continuando os que tudo controlam a escolher e a comandar por detrás da cortina. Os candidatos uninominais (que podem também figurar nas listas) qualificam-se apenas para, ganhando a votação uninominal, serem eleitos à frente dos das listas do respectivo partido (porque foram directamente escolhidos) e dentro da quota partidária resultante da votação plurinominal. Os candidatos uninominais são tão do partido como todos os outros, integram uma candidatura nacional colectiva e são escolhidos racionalmente.

Oitavo, explicar, com base na sua própria experiência partidária antes e depois de ser líder, que a possibilidade da escolha uninominal pelos eleitores é a mudança fundamental que se opera na cultura do sistema de candidaturas e que a faz evoluir positivamente, mantendo a racionalidade orgânica que é função dos partidos e coligações assegurarem. O que a competição uninominal faz é favorecer que os partidos escolham para candidatos aqueles ou aquelas que sejam os melhores no conceito do seu eleitorado e da comunidade em geral. E esta é toda a mudança que se comunica à formação de todas as candidaturas. Se o partido se enganar ou quiser enganar, o eleitorado pode sancioná-lo, coisa que hoje não acontece. Esta a diferença. Hoje, é comer e calar. Por isso, o sistema tem descido até tão baixo.

Nono, assumir a linha da frente, liderando a ampliação dos consensos numa reforma para todos, melhorando a proposta, mas sem nunca comprometer a transformação fundamental (sistema misto com círculos uninominais/plurinominais e círculo nacional de compelação) que reconcilia a cidadania com a democracia. A reforma carece de liderança esclarecida e determinada do primeiro ao último dia. Mas terá prémio, um grande prémio.

Décimo, preparar, com exemplar independência e imparcialidade, como tem sido – há que o reconhecer – a tradição portuguesa desde 1975, a convocação das primeiras eleições pelo modelo da representação proporcional personalizada, uma nova grande festa da democracia, como as constituintes ou as primeiras eleições legislativas de 1976.

Será extraordinário ver a campanha eleitoral a irradiar por todo o país e aí se enraizar, nos debates localizados de vários duelos uninominais. Já não será apenas aquela coisa distante, muito espectáculo, mas lá longe, do líder de cada partido com a televisão atrás. Será extraordinário ver os eleitores a poderem debater com os candidatos na sua proximidade e estes poderem realmente comprometer-se e responsabilizar-se. Será extraordinário ver as pessoas a afluírem massivamente às urnas e fazerem-no, com alegria, para escolher directamente, pela primeira vez, deputado e partido, sem afectarem o peso relativo das correntes políticas.

O líder que o fizer entrará na História. O novo sistema virá para ficar, podendo sofrer os ajustes que a prática aconselhe. Todos reconhecerão – e agradecerão – quem tenha sido responsável por quebrar o galho e abrir a Portugal e à democracia as portas do futuro: democracia com cidadania, democracia de qualidade.

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990