Notícias dos sistemas em que não se pode confiar


É poucochinho que mais de quatro décadas depois da implantação da Democracia não se tenha consolidado um sistema judicial fiável, eficaz e consequente, nos protagonistas e nas decisões.


Qualquer comunidade assenta em regras, que por princípio são iguais para todos, mas que as circunstâncias do funcionamento acabam por revelar não o ser. A esta inquietante realidade somam-se as distorções de quem, sendo protagonista do funcionamento do sistema, não está obrigado a nenhum escrutínio de mérito, objetivo e consequente, em nome dos valores e princípios que deviam estruturar o sistema, mas permitem os arbítrios, os entorses, os humores dos titulares e uma certa perceção de impunidade.

Há muito que os políticos tributam ao sistema judicial um conjunto de atribuições, de competências e de privilégios de função, desde logo, no estatuto remuneratório, tendo por subjacente uma espécie de agrado para estarem bem com os protagonistas do sistema. António Costa tem sido reiterado impulsionador destes agrados, primeiro, aquando da sua passagem pela pasta da justiça, nas competências e poderes, mais recentemente nos estatutos remuneratórios, com aumentos salariais e eliminação dos tetos que existiam. Portugal tem aliás a curiosa circunstância de ter em funções políticas de administração do sistema, alguém que é parte do sistema, o que reforça a dificuldade do exercício de decisão ou de avaliação em causa própria. Vens do sistema, ao sistema regressarás.

Há muito que o sistema funciona com uma ampla margem de discricionariedade, manifesta incompetência, injustiça e uma perigosa perceção de inquebrantável proteção corporativa, que não avalia, nem se deixa avaliar, permitindo a persistência dos abusos, das discricionariedades e afins, com amplos conluios de afirmação das agendas em articulação com a comunicação social.

A guerra de posições entre o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e a Procuradora Geral da República a propósito da existência ou não de hierarquia dos procuradores dá expressão a diversas realidades sintomáticas do funcionamento do sistema.

Os reiterados agrados políticos não produziram, nem produzem, os efeitos desejados, porque a discricionariedade, a geometria variável na aplicação das leis e a falta de noção do funcionamento da sociedade são crescentes. Apesar de tudo, menores do que as promiscuidades com a comunicação social, orientadas para a produção dos efeitos desejados. A ligeireza com que, por vezes, as investigações são conduzidas e as acusações são formuladas reflete-se na absolvição de arguidos com as vidas completamente destruídas.

Os mesmos que sabem do ineficiente funcionamento geral do sistema, não hesitam em arremessar o populismo do alegado bom funcionamento do sistema em relação a nichos da população, sempre visados pela justiça popular, os políticos. Dizem que com o parecer da PGR “acabaram as investigações a políticos”, mas esse não é já o quadro em relação a alguns, sobretudo à direita? Onde estão as investigações a negócios ruinosos de privatização e de alienação de ativos pelo governo PSD/CDS? Não é do domínio do alarme social que os anos se sucedam e quase nada aconteça com os desmandos de milhões do sistema bancário, com os protagonistas a desfrutarem da liberdade que puderam pagar?

O sistema funciona mal. Está montado em cima de protagonistas que não se avaliam, nem se deixam avaliar pelas disrupções, incompetências e beliscões ao Estado de Direito que materializam. Está eivado de maus fígados, modelações de comportamentos e leituras enviesadas da lei e da realidade que geram arbitrariedade que precisa de ser escrutinada e corrigida por alguém, sem se ter de percorrer o calvário de recursos judiciais que consomem uma vida. “É da vida”, dirão alguns. É poucochinho que mais de quatro décadas depois da implantação da Democracia não se tenha consolidado um sistema judicial fiável, eficaz e consequente, nos protagonistas e nas decisões.

Como em tantas outras latitudes, a questão de sempre é a de saber quem guarda o guarda? Quem pode assegurar que pulsão corporativa não é garantia de arbítrio sem apego aos direitos, liberdades e garantias e que as intromissões hierárquicas ou políticas não distorcem o funcionamento do Estado de Direito Democrático. Entre as ganâncias em presença, de quem quer fazer tudo o que lhe aprouver e de quem quer que não se faça o que não lhe convém, tem de haver um equilíbrio, assente na lei e no cidadão, qualquer que seja o seu estatuto ou condição. E não é assim.

O problema é que o mau funcionamento deste pilar do funcionamento da sociedade portuguesa projeta-se, noutras dimensões do quotidiano dos portugueses, contaminando o funcionamento de outros sistemas. É que sabendo-se de como funciona a justiça, há toda uma margem de reajustamentos que são perniciosos, geradores de injustiça e promotores de um inadequado equilíbrio entre os direitos e os deveres.

Por exemplo, no futebol, em que é suposto o jogo jogado ser o resultado da expressão desportiva dos jogadores e da aplicação das leis pelo árbitro. Porque havia muitas dúvidas sobre a aplicação das leis, criou-se o VAR, que é suposto auxiliar o árbitro no terreno nas decisões mais difíceis, suscetíveis de escaparem ao olho humano em jogo corrido. Tal como no sistema geral, as medidas de reforço da aplicação da lei são distorcidas se o juiz indicado é o Y ou o Z, se o VAR é o W ou V. Tal como no sistema geral, o arbítrio está à vista de todos, a gritaria apenas serve para que, nos momentos certos, as regras sejam distorcidas, quem deve fiscalizar a aplicação da lei proteja a corporação e que o sentimento popular de injustiça fervilhe rumo ao disparate. É que quando os sistemas não funcionam, todos os disparates são possíveis e, depois, emergem pungentes sobressaltos coletivos. É tudo uma questão de estar atentos aos sinais, eles estão aí. Não são confiáveis, importa agir em conformidade.

 

NOTAS FINAIS

PORTUGAL ESPAÇO DE INTOLERÂNCIA Não é possível persistir na consagração de direitos a nichos e no despojo ou condicionamento do exercício de direitos a outros. É bipolar e incoerente. O aumento do IVA aplicado à tauromaquia é uma intolerância, um esgar autoritário de uma política de gosto, proposto por políticos que convivem mal com a diferença.

PORTUGAL ESPAÇO DE ATRASO A incompetência do regulador das telecomunicações, ANACOM, na concretização do 5G em Portugal, coloca-nos nas traseiras da Europa e em desvantagem com a Espanha, cuja economia apresenta sinais preocupantes.

PORTUGAL ESPAÇO DE DISPARATE A impreparação para a governação é um traço que perpassa os tempos. Há erros de casting que são tão visíveis que não precisam de nenhum auxiliar. Verbalizar no coronavírus uma oportunidade para as exportações agroalimentares, pode corresponder à realidade, mas o simples enunciar é um disparate político inaceitável.

 

Escreve à segunda-feira