Há processos que se desenvolvem longe dos olhos. Tão longe e de forma tão discreta que ninguém dá por isso. E, para darem frutos, é preciso dedicação, método e, claro, jeito. Assim é a compostagem. Por Lisboa, às iniciativas da autarquia talvez ainda falte a fatia do método. Projetos existem. E muitos. Mas poucos são conhecidos pelos moradores e a compostagem acaba por ser vista como um nicho que não é para todos.
Na freguesia dos Olivais, o relógio corre para as onze da manhã e um pequeno café junto à Quinta Pedagógica dos Olivais continua cheio. No pequeno espaço com três mesas e um balcão que quase sai pela porta, quem ali está e vive na freguesia franze de imediato os olhos à pergunta “Onde está o compostor?”. Num jogo de memória e equilíbrio do café que segura, o dono do espaço diz simplesmente que não sabe. Ali, ninguém conhece nenhum compostor e há quem desconheça o significado de compostagem. Atiram para a quinta pedagógica. “Isso é aquela coisa dos restos? Deve ser na quinta, não estou a ver outro sítio”, diz um dos clientes.
Um dos cinco compostores comunitários oferecidos e instalados pela Câmara Municipal de Lisboa há um ano está, de facto, na quinta pedagógica, na freguesia dos Olivais. Os outros estão junto à sede da Junta da Freguesia dos Olivais, na Ajuda, em Campolide e no Areeiro. O projeto arrancou há um ano e, ao contrário do que disse o cliente do café, não é “aquela coisa dos restos”. Aliás, no compostor não se pode colocar comida cozinhada. Esses restos vão mesmo para o lixo orgânico. No compostor, que é uma espécie de casinha de madeira, colocam-se cascas de frutas, legumes, ovos ou até borras de café. No final do processo obtém-se o chamado composto, que pode ser utilizado como fertilizante. Mas, acima de tudo, a compostagem converte lixo que iria para as incineradoras noutro material útil. Poupa-se no fertilizante e o ambiente.
Além dos compostores comunitários – onde é possível depositar o que sobra da cozinha junto dos compostos de mais pessoas –, a Câmara de Lisboa decidiu também integrar no mesmo projeto a oferta de compostores domésticos, destinados a quem tem espaço em varandas ou quintal. Para aderir ao projeto Lisboa a Compostar basta uma inscrição através do site criado exclusivamente para este propósito. A autarquia oferece uma formação onde é explicada de forma geral a compostagem e, no fim, existem duas hipóteses: ou a pessoa leva o compostor ou lhe é entregue uma chave para ter acesso ao compostor comunitário mais próximo da sua área de residência. A partir daqui, é com os utilizadores. No espaço de dois meses – entre o primeiro dia de setembro do ano passado e o dia 31 de outubro – foram entregues pela autarquia de Lisboa 137 compostores domésticos e formadas 220 pessoas.
O problema deste projeto é que, desde o início, está focado nos números, e não nos métodos. Ou seja, o objetivo anunciado no início do projeto pela autarquia era o de atingir quatro mil inscrições em 2020. Se o objetivo irá ou não ser cumprido, a câmara municipal não revelou, e também pouco importa. Até porque nos Olivais, por exemplo, só há 12 pessoas que vão lá regularmente – dos 30 inscritos. Claro que falta perceber quantas pessoas levaram um compostor para casa depois da formação. Mas essas pessoas continuam realmente a fazer compostagem? Não se sabe e a Câmara Municipal de Lisboa também não divulga.
E, por falar em divulgação, a comunicação do projeto passa por dar informação através do site da autarquia ou do Facebook. “Acha que eu vou à internet ver essas coisas? Nem sei procurar isso”, diz um dos habitantes dos Olivais.
Um ano, zero composto Ainda na quinta pedagógica, Filipa Gaspar, uma das técnicas que ficaram responsáveis pela parte da compostagem, explica que são os funcionários “a fazer a manutenção do compostor, ou seja, são colocados os secos – as folhas – para não criar cheiro nem bichos, e para a matéria se decompor mais rápido”. Enquanto um dos funcionários mostra como se faz – pega no ancinho, deita folhas, mexe os resíduos e já está –, Filipa explica que nunca ninguém levou nenhum composto para casa porque os resíduos ainda não foram transformados em composto.
O compostor dos Olivais “foi inaugurado com três participantes” em março do ano passado, diz a técnica. “Neste momento temos 30 inscritos mas, desses 30 inscritos, só 12 é que são assíduos. Ou seja, 18 nunca participaram”, acrescenta. Daqueles que vão até à quinta pedagógica, uns vão semanalmente, outros quinzenalmente e outros mensalmente – daí ainda não existir composto formado.
Entre ovelhas, galinhas e um gato que não é da quinta mas recebe os visitantes à porta como se fosse a sua casa, Filipa continua a explicar que, de facto, “o que acontece é que as pessoas se inscrevem, mas depois é difícil aderir com frequência porque têm de guardar os resíduos – se moram perto, é mais fácil trazer mas, se moram longe, é difícil”. “Isto é uma mudança de hábitos e de pensamento. Mesmo nós aqui, funcionários, podemos trazer e fazer compostagem, mas os que moram longe, se ainda vierem com um saquinho com os restos dos resíduos…”, explica a funcionária, acrescentando que não existe “uma grande adesão, é verdade, mas pode ser que vá melhorando ao longo do tempo”.
Dando uma volta por Lisboa, não é difícil perceber porque ou os compostores têm poucos adeptos ou não há mais inscritos. Na freguesia do Areeiro, centro da cidade, existe um compostor comunitário. E a história repete-se. Poucos sabem onde foi instalado e que está ali, à distância de uma inscrição. “Vivo aqui há 27 anos e nunca ouvi falar em tal coisa”, diz a dona da papelaria da Rua Presidente Wilson, a 30 metros do compostor, enquanto pergunta a um cliente, também morador, se sabe onde está a enorme caixa de madeira. Obtém a mesma resposta: não sabe. Este compostor fica entre carros estacionados milimetricamente, num largo rodeado de prédios. É preciso atenção para dar conta dele. Segundo a Câmara Municipal de Lisboa, atingiu a capacidade máxima de utilizadores, “não podendo de momento aceitar novos munícipes”. “A compostagem é um processo moroso, que leva cerca de seis meses até se obter o produto final, pelo que existe um limite à quantidade de resíduos que podem ser aceites”, justifica a autarquia no seu site.
Mas, se o compostor do Areeiro não é fácil de encontrar, o mesmo não acontece com o que foi instalado em Campolide. Com vista para o hotel de cinco estrelas Dom Pedro encontra-se o dito compostor. Mas está vandalizado: já não é completamente castanho, agora está pintado com graffiti, já não está trancado, não é preciso chave para abrir e lá dentro já não há composto nem vestígio de sobras de comida, há, sim, chapéus de chuva e lixo.
Compostagem pela internet Em todas as áreas há os autodidatas. E a compostagem não é diferente. Pessoas que querem dar as sobras das frutas e legumes ou que procuram essas mesmas sobras para o seu compostor doméstico não faltam em Lisboa. Estão é longe do projeto da Câmara Municipal de Lisboa. O site ShareWaste.com funciona à escala global e é muito mais utilizado nos Estados Unidos ou no Reino Unido, por exemplo, do que em Portugal ou nos restantes países da Europa. Em território nacional, os inscritos no site não chegam a 50, estando concentrados maioritariamente em Lisboa. Na capital são 19.
Por cá, numa casa em construção na zona de Campolide, João Coelho aproveita a aplicação para lutar contra o desperdício alimentar. Não recebe muitos restos porque, como diz, “no site é preciso estar sempre a recolher, combinar horários e, às vezes a disponibilidade não é compatível com quem quer dar”. É por isso que “os compostores comunitários são a forma mais fácil para começar – a pessoa tem uma chave, quando tem disponibilidade vai lá”, acrescenta.
O arquiteto fez o seu próprio compostor, há três anos, reutilizando um bidão de 80 litros. Para facilitar a compostagem tem a ajuda das minhocas, que são um excelente aliado na decomposição dos restos da comida. “Oitenta por cento do lixo que nós fazemos dá para compostar”, explica João Coelho, acrescentando que pode ser aproveitado tudo aquilo que não é ácido – alhos e cebolas não entram –, que não tem gordura e que não é animal. Depois, mais ou menos seis meses depois, João Coelho já tem composto.
O número de pessoas que faz compostagem está a crescer, diz quem se dedica a esta atividade, mas ainda há um longo caminho a percorrer. “Estou sempre a explicar isto a toda a gente porque ninguém sabe muito sobre este assunto”, diz João Coelho.
Daí salta-se para casa de Tierri Correia, onde os vizinhos já perguntam: “Mas o que é que ele está a fazer?” Há até um vizinho de 81 anos que faz questão de participar na compostagem e dá a Tierri as sobras da sua cozinha. Este jovem consegue ter composto, em média, de dois em dois meses – tem quatro caixotes. E os resultados chegam tão rápido porque vai buscar aos restaurantes que ficam perto de sua casa os resíduos orgânicos que iriam parar ao lixo. No final, Tierri usa o composto como fertilizante para as suas plantas e acaba por guardar uma parte para oferecer a quem precisa para as suas hortas.
Tierri Correia foca-se nas boas práticas e garante que ainda “há uma falta de colaboração com as pessoas que fazem compostagem” e que existe “um pensamento egoísta” que fomenta “práticas não muito corretas”.
Comunitária ou em casa, a compostagem permite reutilizar aquilo que, à partida, muitos pensam que não tem salvação. Aliás, segundo a Câmara Municipal de Lisboa, “só em 2017 foram recolhidas diariamente em Lisboa mais de 600 toneladas de lixo comum, das quais 40% de biodegradáveis, encaminhados para incineração”.