Foi na sexta-feira, quando estávamos perto da última hora do dia, o momento escolhido para o Reino Unido deixar de ser membro da União Europeia, 47 anos depois de ter entrado.
A União Europeia cortou os laços com o Reino Unido às 23:00 horas, desse 31 de janeiro de 2020, e nasceu uma nova união a 27 Estados Membros. Nas horas seguintes ficamos com dois registos sentimentalmente antagónicos: O de Boris Johnson a pedir união e a confiar no novo “recomeço” do Reino Unido e o dos líderes europeus a unirem as suas vozes, em uníssono, no sentido de transmitir que foi um “dia triste” para o Velho Continente.
Para já, muda muito pouca coisa porque nos próximos 11 meses o Reino Unido irá cumprir as diretrizes essenciais da União Europeia. O que essencialmente muda no imediato, na nossa União, é que começamos a ser 27 membros e não 28.
Para a União Europeia (UE) que tinha 500 milhões de habitantes há algumas mudanças significativas: Menos quase 70 milhões de habitantes, menos 5% de território mas também menos 133 prémios Nobel ou quase 900 medalhas olímpicas.
Mas há vários pensamentos que podemos ter. Em primeiro lugar, friamente, o Reino Unido não deixou a Europa, este movimento é como se tivesse acabado de passar para uma outra divisão ou uma outra sala da mesma casa. O seu papel europeu sempre foi complexo e nem sempre caminhou no sentido da maioria dos estados membros da EU. Basta recordar as dificuldades em 1986 com a criação do mercado interno europeu, a saída do Reino Unido do Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio em 1990 e a consequente ausência de visão ou aprovação positiva sobre a Moeda Única na Europa. Em tudo isto, o Reino Unido esteve do lado oposto à maioria europeia. Podíamos ler, em 1937, que “O desejo de isolamento, o conhecimento de que é impossível – esses são os dois polos entre os quais a agulha da bússola britânica vai continuar a vacilar.”, são palavras do historiador Robert Watson, há quase 100 anos, sobre a “História do Reino Unido na Europa” e que ainda hoje, em pleno ano de 2020, estão atuais com o real Brexit que vivemos.
Há ainda hoje duas alas de pensamento, e assim continuará enquanto existir vontade de manterem-se os Speaker's Corner’s da vida, de haver simplesmente debate de ideias ou o direito à palavra: Por um lado, parte dos britânicos aliados à vontade de terem permanecido na UE e, por outro lado, os britânicos que queriam sair da UE e agora festejam.
Habituámo-nos a ler e ouvir, por parte daqueles que queriam que ainda hoje existissem 28 países Membros na UE, que um Brexit iria deixar o Reino Unido muito mais fraco, empobrecido, dividido, menos influente no mundo e cada vez menos atrativo. Há, independentemente desta retórica ser mais ou menos aceite, alguns dados que dão razão a esta metade dos britânicos. De acordo com a conceituada agência norte-americana Bloomberg, até o final de 2020 o Brexit terá custado ao Reino Unido cerca de 230 mil milhões de euros em crescimento económico perdido. Este valor, em “moeda local” de cerca de 200 mil milhões de Libras, é quase tanto (ajustado pela inflação) quanto os britânicos pagaram no orçamento ao longo do seu período de integração na EU desde a entrada, em 1973.
Não é plausível que nem os adeptos da permanência na EU queiram, tal e qual uma Vendetta, que o seu país sofra pesadas derrotas e consequências socioeconómicas com base na sua saída da EU visto que, afinal, foram penosos quatro anos a combaterem o que no dia 31 de janeiro se tornou certo.
Ao mesmo tempo, é notório que o povo britânico não ambiciona que o Brexit venha a prejudicar o projeto europeu em que estiveram. Nem um Brexit revanchista que queira bloquear todas as relações bilaterais com a comunidade europeia nem, também, uma utopia que cumprisse os sonhos maiores dos Brexiteers, com uma propaganda tão atraente para a projetos de “Exit” que os outros 27 Estados-membros poderiam eventualmente seguir o exemplo do Reino Unido. Se esse fosse, porventura, o maior objetivo do Brexit, deveríamos todos nós europeus desejar que falhasse nesse sentido.
É mais ou menos neste campo de reflexão que chegamos ao foco das maiores questões. O que há de errado com uma Europa de Estados democráticos e soberanos com uma salutar e pacífica cooperação?
A história ensinou-nos que, no que concerne ao velho continente europeu, nunca foi benéfico forçar os seus vários povos a uma única alternativa. Outra ilação histórica é que seria impossível subsistirmos numa unida democraticamente e próspera Europa se todos os Estados iniciassem um regime competitivo desenfreado, estritamente nacional e patriótico sem visão de cooperação e cedências.
A longo prazo, um Brexit "bem-sucedido" dependerá, portanto, de outras nações que não sigam o próprio o exemplo britânico. Será uma espécie de anticorpo dentro da (esperamos todos) profícua e duradoura existência da UE.
No entanto, os europeus britânicos agora enfrentam uma tensão real no dia-a-dia entre os imperativos patrióticos e europeus. O Reino Unido só poderá querer organizar-se e entender-se depois do Brexit e, naturalmente, ambicionar neste presente imediato que a UE faça ainda melhor do que tem vindo a fazer. Afinal, é apenas a escala dimensional superior (falamos de mais de 400 milhões de pessoas) e a unidade política e social da UE que possibilitam acordos comerciais tão vantajosos como o que se assinou recentemente com o Japão. O Reino Unido precisará de ter canais com a EU para crescer. E, seguramente, desejará que as relações entre os demais canais permaneçam o mais próximo e construtivas possível.
Inteligentemente e em clara manobra tática, o Governo liderado por Boris Johnson continua a falar de um novo começo e em "reunir o país depois do Brexit". A mensagem é clara: Ter em consideração os interesses e desejos de metade do povo britânico que, com consistência estoica e de ferro, nas sondagens e vários estudos de ciências sociais, até à recente eleição de dezembro passado, afirmava consistentemente que prefeririam que o Reino Unido permanecesse na UE.
A única grande decisão que resta no seio do Reino Unido está na Escócia: deixará o próprio Reino Unido para se juntar à União Europeia? O apoio popular crescente à independência da Escócia chegou a valores de 52% segundo uma grande sondagem publicada esta segunda-feira, dia 3 de fevereiro, pela Panelbase Poll, um dos principais institutos de pesquisa britânico.
Em dezembro, o próprio Governo escocês lançou a campanha “O direito do povo escocês de escolher seu futuro”. Importante frisar que a Escócia tem na sua legislação própria um regulamento sobre quem poderia votar e quais viriam a ser as regras para um eventual referendo sobre uma saída do Reino Unido. No entanto, e para já, Boris Johnson recusa-se a colocar a votação a independência do país.
O caminho não será tranquilo nem fácil, mas é possível que seja bem feito, com respeito e cumprimento pelas naturais ambições do povo britânico e respeito e cooperação pelas políticas delineadas pela UE. Sim, é possível e sim, é o que todos os europeus devem querer.
Mas, como só poderia ser, o caminho das decisões maiores é para quem decidiu (e não é nada redundante). O Reino Unido terá de adaptar-se internamente aos regulamentos europeus que tornaram tão competitivo o seu mercado laboral que é pujante e sempre procurado por meio mundo.
Terá de ser repensado pelos britânicos como fazer com o seu reconhecido universo Académico, aliás, veja-se para exemplo: A UE tinha, em 2019, 343 universidades no prestigiadíssimo Ranking de Xangai, que ordena as 1.000 melhores instituições de ensino superior do mundo. Destas mil, 61 eram britânicas, o equivalente a quase um quinto (17,8%). No top 10, além das norte-americanas, só existem duas universidades “de fora” e logo ambas do Reino Unido (Cambridge, em 3.º e Oxford, em 8.º) e é preciso chegar à 26.ª posição para encontrar a primeira universidade europeia não britânica (Universidade de Copenhaga)… percebemos o impacto?
E como ficará a participação britânica no programa Erasmus, que nos últimos anos representou metade dos estudantes britânicos que estudam no exterior, além de trazer mais de 30.000 estudantes europeus por ano para este ex-Membro da UE?
47 anos depois da sua adesão, mesmo passando ao lado da vontade maioritária para implementar um Mercado Único, a Moeda Única, a Livre circulação de pessoas e Bens ou ainda da Rede Transnacional de redes viárias e Ferrovia, há algo inevitável para o presente e futuro: O Reino Unido terá de cooperar e irá precisar muito da União Europeia.
E a União Europeia irá continuar a contar com o Reino Unido porque continuamos todos a ser Europa e, aí, é a história que não nos deixa separar.
Carlos Gouveia Martins