Bubu, criatura mágica cor-de-rosa e trapalhona do universo Dragon Ball, Mary Poppins, um califa da Margem Sul com o cérebro gigante e Shun Lee, lutadora do videojogo Street Fighter, entram num bar… ou melhor, sobem ao palco para contracenar com uma reimaginada corte portuguesa que procura reconquistar a historicamente disputada cidade de Olivença aos espanhóis. Podia ser o início de uma anedota absurda, mas é o conceito absurdo do novo espetáculo de Ricardo Neves-Neves e Filipe Raposo.
Se calhar é melhor explicar com mais calma. A Reconquista de Olivenza, a peça de teatro que volta a juntar o dramaturgo e encenador Ricardo Neves-Neves e o pianista e compositor Filipe Raposo (anteriormente haviam colaborado em Banda Sonora), reimagina a história de Portugal “numa zona muito livre do pensamento”.
“Não existe propriamente um fio condutor em termos de dramaturgia”, diz Ricardo Neves-Neves. “Há um fio condutor ligado à geografia numa zona muito livre de pensamento [que permite] a ligação histórica com existência de personagens de séries e filmes de animação e videojogos”.
Segundo o encenador, foram dois os pontos de partida para esta peça. Um é a “transformação do milagre de Ourique”, em que Deus aparece num sonho a D. Afonso Henriques e lhe concede a força para avançar e vencer a batalha. Neste caso, em vez de Deus surge Shenlong, o dragão que concede milagres em Dragon Ball, que desafiará a corte portuguesa a encontrar as sete bolas de cristal para poder pedir um desejo: neste caso, a formação do Quinto Império e mil anos de paz.
O segundo vem também da televisão mas, neste caso, de personagens de carne e osso – nomeadamente, um programa dos anos 90 em que Mário Soares imagina com um convidado alemão como seria Portugal se, depois do 25 de Abril, o país se tivesse tornado comunista.
A Reconquista de Olivenza é também um exercício de imaginação e de suposições. Neste novo Portugal de Ricardo e Filipe, o espaço geográfico é familiar, mas são-nos apresentadas diversas regiões autónomas dentro de Portugal. A Margem Sul é convertida na Margem Soviética, dominada por comunistas, e Alcácer do Sal num califado gerido por árabes.
O exército português é comandado por Bubu e, quando a corte pede auxílio ao Governo chinês (através de uma chamada via Skype), recebe Shun Lee como reforço.
“Falamos de absurdo do princípio ao fim”, explica Filipe Raposo sobre a peça de sua coautoria que se estreia, esta quinta-feira, no Teatro São Luiz, em Lisboa, e vai estar em cena até dia 16, e que, a certa altura, faz uso de um grupo de membros do califado de Alcácer do Sal para, tal como Aladino, esfregar um samovar. A diferença é que n’A Reconquista de Olivenza, o Génio da Lâmpada é Álvaro Cunhal, que cede uma das suas “icónicas sobrancelhas” para os pelos serem usados como dardos atordoantes.
“Acho piada rirmo-nos à volta desta ideia, mas ninguém se ri quando se diz que a Virgem Maria apareceu em Ourique para iluminar um determinado momento da nossa história”.
Mais Estranho que a Ficção
As personagens desta peça estão relacionadas com o universo da infância e juventude de Ricardo Neves-Neves, que garante ser um jogador imbatível de Street Fighter. Algumas das escolhas, confessa, são mais intuitivas, mas outras requerem explicações mais elaboradas.
“Podia ter escolhido o Son Goku para ser o líder do exército português, mas ele é uma personagem heroica. Assim estaria a fazer um elogio ao exército e aos militares, algo que não me interessa neste espetáculo”, justifica. “O Bubu é uma personagem trapalhona, confusa, indecisa, periclitante e frágil. Representa mais a forma como quero que o exército exista no espetáculo do que uma zona de maior violência”.
A própria forma como o encenador dirigiu os artistas vai buscar inspiração ao cinema de animação, com “uma zona expressiva muito evidente e uma relação muito disfarçada com o realismo”, – relação esta que abre a porta à crítica social.
“O exagero da expressão é uma zona que podemos encarar como caricatura ou cartoonesco”, explica. “Interessa-me o trabalho de verdade naquilo que é ficção. Como é que trabalho personagens que não existem na rua, mas que ainda assim são reais? Aquelas pessoas que olhamos e vemos duas ou três vezes por ano e que são completamente fora da norma. Este espetáculo é um conjunto de cromos que se encontram todos aqui, que vivem a sério e têm uma relação entre eles. São personagens a sério, com princípio, meio e fim”.
Para o compositor Filipe Raposo, a desconstrução destes mitos, ou monomito, “uma história contada de forma fantasiada por um povo” e a “exploração do absurdo até bater no fundo” são, nesta peça que conta com Sandra Faleiro, Tânia Alves e, ainda que em vídeo, Filomena Cautela, entre um vasto elenco, uma forma de nos “olharmos ao espelho e refletirmos sobre a nossa história”.
“Obrigado, Ricardo, por nos obrigares a refletir”, diz a Ricardo Neves-Neves sobre A Reconquista de Olivenza, que vê como um autêntico “sofá de Freud coletivo”.