Ronaldo – 35 anos. Recordando os alegres dias do país triste

Ronaldo – 35 anos. Recordando os alegres dias do país triste


O Euro 2004 foi o primeiro grande momento da carreira de Ronaldo. “Aprendi muito com aquela derrota frente à Grécia!”, contou-me. Tinha 19 anos e o mundo abria-se na sua frente. Vivi com ele momentos impossíveis de esquecer.


Disse alguém, lá bem no coração, que as horas passam devagar e os anos passam depressa. Dois mil e quatro fica longe.

Domingo em Lisboa e na alma da gente. Pelas ruas, pelos jardins, pelos caminhos: braços e abraços. Uma forma diferente de gostar de um país demasiado triste durante demasiado tempo.

O Portugal-Grécia de 4 de julho foi um jogo de pátrias. Vencemos a Rússia, a Espanha, a Inglaterra e a Holanda porque eles não passavam de meras equipas e nós éramos uma pátria. Não A Pátria de Chuteiras de Nelson Rodrigues porque os que não calçavam as chuteiras também jogavam. Os portugueses jogaram todos!

Mas a Grécia também era uma pátria, reconheça-se. Uma pátria granítica de homens enormes, de Aquiles e Hércules, de Ajax e Perseu, que lutava por cada palmo de relva como se disso dependesse a sua vida, a história milenar dos seus montes de oliveiras e o azul categórico do mar Egeu. A bola era só uma. Eles não a quiseram. Ofereceram-na generosamente aos pés dotados dos nossos jogadores. Juntaram-se em redor da acrópole da sua baliza como se repelissem os incontáveis exércitos persas de Ciro e Xerxes. O passar dos minutos trouxe consigo, de mão dada, a ansiedade. E então houve o desequilíbrio fatal: eles passaram a ser só um e nós apenas onze. Não confiar nos gregos, nem quando dão presentes! O cavalo de Troia da derrota já tinha entrado pelos portões de Portugal.

Nós de cabeça baixa, um dilúvio de confetes azuis.

Azul, maldito azul!

Domingo, maldito domingo!

“Sunday, bloody sunday!”

No relvado, o Cristiano Ronaldo chorava no meu ombro como o menino que era. E agora, que menino é? Consegui dizer-lhe apenas: “Há ainda tanto para ganhar. No futebol e na vida!”

E ele foi e ganhou. Até o campeonato da Europa que tinha perdido.

Já lá vão 16 anos. A noção do tempo é tão subjetiva como as verdades do Quixote.

Lembram-se da aventura da Cova de Montesinos? Quando o Cavaleiro da Triste Figura desce às profundezas de uma caverna? Pelas contas de D. Quixote, tinha estado três dias e três noites naquelas partes remotas, escondidas da vista humana. Pelas contas do fiel Sancho, não fora além de uma hora. Venham cá agora convencer-me de que as horas não passam daquilo que mais convém à protérvia de cada qual. Perdem o vosso latim. E por isso Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, mais conhecido popularmente por António Gedeão, resumia no seu poema “Impressão Digital”: “Onde Sancho vê moinhos/ D. Quixote vê gigantes/ Vê moinhos? São moinhos!/ Vê gigantes? São gigantes!”

É isso mesmo: os anos passam tão depressa, e as horas tão devagar. Essa hora e meia de dia 4 de julho na Luz nunca mais passa na tristeza da memória.

Parar o Tempo Vivi na seleção nacional, como assessor de imprensa, anos tão intensos como inesquecíveis. Todos nós que lá estivemos, recolhidos no centro de Alcochete, saindo pelo meio da multidão para os jogos, regressando no meio da euforia das vitórias, sabemos que é algo que jamais se repete. Esteve perto, em 2006, no Mundial da Alemanha. Mas era, ainda assim, fora de casa.

Cristiano Ronaldo era um garotinho quando o conheci. Era o benjamim desses dias alegres do país triste. Uma vez contou-me: “Para mim foi qualquer coisa de muito especial! Tinha 19 anos, o mais novo do grupo, e ainda por cima a jogar um Europeu em Portugal. Depois de ter chegado a titular, ainda senti maior responsabilidade. Aconteceu tudo muito rápido. Fiquei tão feliz!”

As lágrimas esperaram por ele.

Pernas finas de bailarino numa ânsia redonda de bola: “A derrota com a Grécia foi muito mas muito importante para o meu crescimento como jogador. Nada é fácil na vida! Ninguém nos dá nada! Temos de ir à luta, dobrar os obstáculos. Tínhamos tudo a nosso favor e perdemos. E eu aprendi a ver a vida e o futebol de outra forma. A querer ganhar mais e mais ainda”.

Essa nossa conversa teve lugar dez anos depois de 2004. Uma espécie de balanço. Já era outro Ronaldo. Explodira de bíceps e tríceps, tornara-se um ás dos deltoides e dos escalenos, trazia à transparência os retos abdominais e os oblíquos, as suas carótidas e jugulares fazem, hoje, as delícias dos caricaturistas. É o preferido das divorciadas frequentadoras de ginásio, de bebedores de cerveja invejosos, de adolescentes arruaceiros de bairros suburbanos. Está num centro vertiginoso do universo, não escapa à maledicência, questionam-lhe as escolhas familiares, revolvem-lhe o passado em busca de amantes descontentes, enfrenta acusações de violação. Sim, o mundo do rapazinho em lágrimas sobre a relva da Luz tornou-se tão grande que ele precisa de ser enorme para caber nele.

Só uma vez acontecera. Com Eusébio. Cristiano Ronaldo repetiu a gesta: o seu nome confunde-se com o país, é o Ronaldo de Portugal como Portugal é de Ronaldo para lá de todas as fronteiras. “Eu podia chamar-te pátria minha/ Dar-te o mais lindo nome português”, cantaria Carlos do Carmo as palavras de Manuel Alegre. E, ao mesmo tempo, o seu país é o golo e ele é do golo como de um país.

Enquanto escrevo recordações soltas desse verão mágico de 2004, lembro-me de Cruyff. 12 de junho, no lugar das Antas, jogo de abertura frente à Grécia, com o resultado em 2-0 a favor dos gregos. Cristiano entrou para marcar o golo português já no final do tempo de compensação. Ganhou o lugar. Usava nas costas o n.o 17. Tinha-se estreado em Chaves, menos de um ano antes, no dia 10 de agosto de 2003, num particular frente ao Cazaquistão. No Porto jogou 45 minutos, substituindo Rui Costa, e lançando-se de imediato nas correrias que faziam dele irmão gémeo do vento, ampliador natural dos gritos que vinham das bancadas. “Na plenitude das suas forças, jovem como é, vê-se tão capaz de tudo que, com as suas características, atira-se uma vez e outra sozinho contra o mundo”, explicou Cruyff. “Neste aspeto, melhorará com os anos. É uma questão de adaptação que vem com a maturidade. Há duas coisas que tem de aprender. Uma: que o que agora quer fazer a cada três minutos terá de ser espaçado, sendo mais seletivo para dosificar as forças. Duas: sendo um grande jogador, aprenderá a selecionar a posição no campo. Participará menos, mas fá-lo-á mais com os colegas”.

Dezasseis anos depois de o ter visto chorar desolado, como o petiz que era, Ronaldo tornou-se um Peter Pan sem sombra. Menino que se recusa a crescer, a bola e ele num furor quase sensual, algo de tango de Piazzola, nada de fado nem de destinos por cumprir. A verdadeira luta de Ronaldo é consigo próprio, com a sua ânsia de ir para além daquilo que já foi, numa ambição em cascata que se entorna sobre companheiros e tolhe de medo adversários, enquanto o público, rendido, espera dele o impossível. É o homem que sai das sombras e grita: “Estou aqui!” Aponta para o peito, aponta para o céu, e está ali num polo milenário de virtudes. Tem um pacto secreto com um deus desconhecido. Eu acredito que conseguirá parar o tempo.