George Steiner. O genial cartógrafo do outro mundo

George Steiner. O genial cartógrafo do outro mundo


Com a morte do último gigante da crítica literária, fica orfã a noção de que a literatura é a grande conspiração da inteligência contra o mundo, uma rede de sonhos e pesadelos que servem de mapa para transformar a realidade.


Até a morte suscita nalguns uma espécie de ansiedade própria do leitor que está danado por saber o que se segue. Com a sua terrível linha de delimitação, essa fronteira absurda impõe-se como um derradeiro e inacessível capítulo diante do qual os homens sempre se perderam no seu próprio reflexo, enamorando-se das mais vertiginosas ficções. E agora que a morte que temos diante de nós é a do último gigante da crítica literária, é natural que se diga que poucos como ele provaram ter o ânimo e o estofo para cruzar aquela com o desejo de revirá-la, tratar de fazer a autópsia da própria morte. Por maior que seja o desafio, como tantos outros grandes leitores reconheceram, as principais virtudes de Steiner ligam-se à sua esplendorosa disciplina intelectual. Eis um leitor que simplesmente não se deixava abater. Fosse o que fosse que lhe pusessem pela frente, por mais alta a muralha ou os obstáculos que encontrasse num texto, ele arranjava maneira de encontrar uma fissura, aplicando-se metodicamente, sem a ajuda de explosivos, antes recorrendo a um cinzel (ou até a uma rude colher) para escavar e perfurar, abrindo um caminho. No mais autobiográfico dos seus livros de ensaios – Errata: Revisões de Uma Vida (2009) -, lembra-se dos dias em que frequentou um seminário, na Universidade de Chicago, lecionado por Leo Strauss sobre os diálogos de Platão. Certa vez, este filósofo político exilado da República de Weimar referiu-se de forma enigmática aos incomparáveis escritos de um filósofo contemporâneo cujo nome não seria proferido naquelas aulas. Steiner não descansou até saber esse nome e, assim que o soube, correu para a biblioteca, deitando mãos ao primeiro volume do autor. Era um exemplar de Sein und Zeit, de Martin Heidegger, que nesses dias não tinha ainda sido traduzido para inglês. Para o judeu cuja família se viu obrigada a fugir por duas vezes à ascensão do nazismo, deixando primeiro Viena e, já depois do seu nascimento – em 1929 -, Paris, ainda que tivesse algum domínio do alemão, o confronto provou ser duríssimo, mas isso não o desmoralizou, antes pelo contrário – tornou-se uma obsessão. Décadas mais tarde, o resultado foi o seu Martin Heidegger (1978), que se mantém uma das mais empolgantes e acessíveis introduções ao espinhoso pensamento daquele maldito colosso.

Vale a pena, de resto, recordar o que Steiner extraiu deste seu mito pessoal e que fez dele um inimigo jurado de toda a facilidade: “Nessa tarde, aventurei-me por um parágrafo de Sein und Zeit (Ser e Tempo). Não consegui perceber sequer as frases mais curtas e aparentemente mais diretas. Mas o turbilhão recomeçava, a irrecusável intimação de um mundo que eu desconhecia profundamente. Jurei a mim mesmo tentar de novo. E de novo. É aqui que eu quero chegar. O que é importante é orientar a atenção de um aluno para aquilo que, de início, excede a sua compreensão, mas cuja estatura e fascínio irresistíveis o atraem. A simplificação, o nivelamento, a redução da fasquia, que dominam agora toda a educação salvo a mais privilegiada, são criminosos. Descuram fatalmente capacidades que permanecerão ocultas”.

Agora que Steiner morreu, aos 90 anos – e imaginamos que sem grande sobressalto, como quem simplesmente vira uma página -, vale a pena recordar a resposta que deu a Luciana Leiderfarb em junho de 2017, quando a jornalista do Expresso lhe perguntou onde estaremos daqui a dez anos. “Não posso responder. Costumava pensar que tinha uma imagem do futuro, mas já não tenho. Isso também faz parte da idade. Estou à espera de morrer e penso que será uma experiência interessante. Quero muito descobrir como é”.

Na hora da sua morte, George Steiner é o último dos grandes e um dos mais influentes intelectuais do séc. xx, um homem de letras e um crítico com um fôlego e uma abrangência incomparáveis, um exaltante linguista e poliglota, filósofo e ficcionista, um professor que ensinou nas mais prestigiadas instituições à volta do globo e que era não só um profundo conhecedor do cânone ocidental, desde a Antiguidade clássica até ao presente, como, a par de Harold Bloom – que morreu no passado mês de outubro -, foi um dos seus mais empenhados defensores, montando guarda e, como refere o obituário do New York Times, rechaçando os ataques de “uma procissão de movimentos críticos, desde o New Criticism, dos anos 1950, ao pós-estruturalismo e desconstrutivismo da década de 1960”. E se previu esta onda contestatária no seio das humanidades e das ciências sociais num dos seus primeiros ensaios – “O repúdio à palavra”, que integra o livro Linguagem e Silêncio (ed. Gradiva, 2014) -, no final mostrou-se convicto de que o longo reinado da civilização ocidental estava prestes a conhecer o seu ocaso. Afirmando que o futuro será do Oriente, profetizou que se algum génio da estatura de Platão ou Mozart surgir no mundo, o mais seguro é que seja um indiano. Como lembra Luís Miguel Queirós no Público, na passagem por Lisboa em outubro de 2007, após uma conferência na Fundação Gulbenkian, Steiner disse aos jornalistas que a civilização ocidental estava “muito, muito cansada”, mas recomendou que se encarasse o facto com fair play: “Tivemos uns ótimos dois mil anos, agora devemos dar a vez a outros”.

Tendo sucedido a Edmund Wilson como o principal crítico da New Yorker, manteve a colaboração com a revista ao longo de três décadas, publicando 150 ensaios nas suas páginas, e nesse período não deixou de contribuir com frequência para outras publicações, embora apenas uma parte dos seus artigos de opinião e ensaios críticos tenham sido posteriormente reunidos em livro. Para perceber como as suas competências enquanto leitor fizeram dele um dos mais dotados e esclarecidos intérpretes da contemporaneidade é preciso compreender a relevância que Steiner dava à literatura, tendo falado das grandes obras como sonhos dos quais despertamos maiores. Num ensaio a propósito de Jorge Luis Borges, reunido no volume George Steiner em The New Yorker (ed. Relógio d’Água, 2017), defende que “a função libertadora da arte deita raízes na sua capacidade singular de ‘sonhar contra o mundo’, de dar forma a mundos que são de outra maneira”. E adianta que “o grande escritor é, ao mesmo tempo, anarquista e arquiteto; os seus sonhos minam e reconstroem a paisagem tosca, provisória, da realidade”.

Na mediação entre nós e a realidade estão as palavras, e Steiner aplicou-se nos trabalhos de mapeamento e estudo dessa relação que sobre ele exercia um fascínio enorme. Certa vez citou Ezra Pound que, a propósito de Ulisses, de Joyce, declarou que “somos governados por palavras”, vincando que as leis estão inscritas nelas, e que “a literatura é o único meio que temos para manter essas palavras vivas e garantir que o seu sentido não se perde nem perverte”.

Steiner sempre se mostrou agudamente consciente do perigo inerente ao poder das palavras, e se a relação entre nós e as palavras tanto o obcecou, ela estava enraizada na sua própria condição de exilado, e como uma paranoia que mantinha acorrentada na cave, descendo uma e uma outra vez para a estudar, foi útil e até central em tantos dos seus ensaios. De alguma maneira, nunca superou a terrífica constatação de que os instrumentos da civilização – não apenas a linguagem, mas a própria racionalidade – podem ser usados como armas da barbárie. Na entrevista ao Expresso, Steiner sintetizou isto de forma soberba: “Toda a minha vida foi dominada pela pergunta: como é que aquilo pôde acontecer na Europa? Como é que por trás da casa de Goethe existe um campo de concentração? Como é que o país mais educado do mundo se tornou nazi? Nunca se esqueça de que a educação na Alemanha era provavelmente a mais avançada, mas não foi suficiente para travar Hitler. Toda a minha vida me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam. Deixe-me colocar a questão desta forma: passo o dia todo com os meus alunos a ler o King Lear e, ao voltar para casa, estou tão possuído interiormente por esse texto que não ouço os gritos de alguém na rua. Alguém grita por ajuda e eu não ouço. Sempre me intrigou até que ponto a ficção – e ‘ficção’ é a palavra-chave – pode ser mais poderosa do que a realidade. Passei a vida a ensinar as pessoas a ler e a amar o que leem. Mas questiono-me a mim próprio sobre o perigo imenso de nos identificarmos com a ficção”.

Enquanto crítico literário, Steiner soube fazer uma distinção substantiva entre os praticantes desta função que, segundo ele, cumpre um papel não só artístico mas moral e social a partir do momento em que o crítico consegue transpor o registo da efemeridade, contribuindo para um juízo que sinaliza momentos marcantes e transformadores na história das ideias. Para ele, de resto, os grandes críticos são ainda mais raros do que os grandes poetas ou romancistas, apesar de o seu dom estar menos próximo das fontes da vida. “A maioria dos críticos”, assevera, “parasitam a substância literária, vão à boleia, pendurados, não passam de sombras para leões”. Se estes apenas acedem à eternidade em segunda mão, Steiner diz-nos que os grandes críticos partem de uma instância literária particular, desenrolam o novelo, e vão ganhando posições e expandindo as suas teses até aos mais longínquos horizontes do debate moral e político.

Dada a sua influência, é natural que Steiner tenha criado alguma resistência, e James Wood, o crítico que lhe sucedeu no trono da New Yorker, publicou em 1995 um demolidor ataque na revista Prospect em que, se reconhece que ele é o mais eminente crítico literário do mundo, adianta que aqueles que o liam nas páginas da prestigiada revista estavam já familiarizados com “as laboriosas imprecisões e melodramas da sua prosa; a forma de os seus adjetivos se alinharem como pelotões, a sua catedral erguida fazendo as grandes obras sussurrarem umas para as outras”. Era um atentado notável contra o prestígio de Steiner e, se não pôde fazer muito para o abalar, isso prende-se também com o ser evidente que se tratava de um golpe de um pretendente que não estava propriamente a matar o pai, mas a tentar afastar um tio excêntrico, como notou Thomas Meaney, crítico do Times Literary Supplement – e isto porque os talentos de Steiner são inegáveis, só restando conspirar contra ele alegando que todo aquele génio já aborrece. De resto, logo a memorável frase com que Wood arranca o artigo nos diz tudo sobre a malícia das suas intenções, a necessidade de polir todo o seu arsenal humorístico e a sua espirituosidade para desafiar o tio. “A prosa de George Steiner é de uma substância notável; é o suor de uma estátua que ambiciona tornar-se um monumento”.

Não é raro sair-se exausto de um ensaio de Steiner, até pela pela forma como não poupava os leitores a minudências e a enredos internos que causam o pasmo até aos grandes especialistas. Os gostos e as inclinações de Steiner impõem-se-nos como a sensação de se estar diante de uma catarata. Não é preciso estar debaixo dela para os sentidos serem submergidos. E depois de um tempo, a própria neblina nos molha até aos ossos.

É a espantosa maturidade dos seus entusiasmos, das suas paixões o que por vezes nos retrai, como se não estivéssemos ainda preparados, não sentíssemos estar à altura da conversa para a qual nos chama. Uma conversa que nos seduz, mas em igual medida nos humilha. É notório como antes de exprimir uma ideia, esta fez já um longo percurso. Não há margem para o improviso, os jogos de azar em que se entretêm os críticos entediados, e nem para as tendenciosas análises daqueles que trabalham para “os sindicatos do espírito”, com as suas estratégias proteccionistas e fundos de pensões do ego para os quais descontam mensalmente os escritores medíocres.

Se gosta de provocar, Steiner não deixa nunca de estar comprometido com uma profunda seriedade nas suas investigações. Daí que as suas sentenças tenham aquela clareza e aquela capacidade de síntese esmagadoras, de algo que se nos impõe como um postulado ou uma lei da física. E fica a sensação, muitas vezes, de que chegámos tarde perante os seus juízos. A sua prodigiosa erudição pode tornar-se exasperante, e tanto mais quanto parece erguer-se como um efeito da vida privada intelectual, emprestando às suas convicções a naturalidade própria do senhorio de uma mansão que atravessou as épocas até se tornar uma relíquia habitável.

Há nas obras de Steiner um modo compassado, aquela serenidade analítica que avança dispondo os seus argumentos como um experiente estratega. E se tantas vezes foi acusado de elitismo, e até de ser pedante, na continuação daquela passagem que citámos lá atrás de Errata, Steiner sublinha que “os ataques ao chamado elitismo escamoteiam uma condescendência vulgar para com todos aqueles que julgamos a priori serem incapazes de fazer melhor. Tanto o pensamento (o conhecimento, Wissenschaft, a imaginação a que se dá forma) como o amor exigem demasiado de nós. Tornam-nos humildes. Mas a humilhação e até o desespero face à dificuldade – depois de suarmos durante toda a noite, a equação ainda por resolver, a frase grega por compreender – podem irradiar com a luz do sol.”

A paródia que foi ganhando forma como defesa face ao seu brilhantismo brincava com os hábitos matutinos de Steiner, o ter assumido por diversas vezes que começava o dia espreguiçando-se da forma mais erudita: antes ainda de termos tomado o café da manhã, já ele traduzira uma longa passagem de algum clássico para uma ou outra das várias línguas em que era fluente. Há muito que Steiner havia adquirido cidadania no outro mundo, esse onde o ar que se respira é exalado pelas grandes obras do espírito.

Thomas Meaney lembra que Steiner conjurava um mundo desaparecido, uma espécie de utopia literária perdida e que nos relembra de um tempo em que estas questões eram debatidas com a maior das devoções, como se se tratasse de questões cruciais. Nesse mundo, ele guia-nos “como se fosse um colecionador no seu próprio museu”. E Claudio Magris notou que “Steiner é um dos poucos mestres que se movem à vontade – como se estivessem em sua casa – na literatura universal e é, contudo, um errante e um desenraizado, um homem do exílio, que vive na sua inteligência e sensibilidade a dura verdade kafkiana da diáspora, a condição do homem exilado de toda a terra prometida, de toda a casa natal”. O autor de Danúbio, talvez o único intelectual que ainda pode ombrear com Steiner, num dos ensaios recolhidos em Alfabetos, descreve-o como alguém que “sabe ser, ao mesmo tempo, grand seigneur e Luftmensch, como diz a palavra alemã que indicava a existência precária, quase vivida ao ar livre e feita de nada, dos hebreus orientais obrigados a viver de expedientes incertos, numa existência perenemente flutuante. Tudo isso lhe permite percorrer as bases da literatura ocidental e os meandros da criatividade que, hoje, segundo adverte, estão prestes a desaparecer, colocados de lado por uma tecnologia que suplanta o próprio Homem”.