Depois de um início de carreira marcado pelo caos, excessos com drogas pesadas e graves doenças, os Fat White Family são uma banda nova. Lias Saoudi, vocalista do grupo, que aceitou dar uma entrevista ao i, por exemplo, sofreu um caso grave de pneumonia. Agora, abandonaram Londres e exilaram-se na tranquila Sheffield, de onde resultou o terceiro álbum, Serfs Up!, lançado em abril de 2019. Depois de uma primeira rodada de concertos, que o vocalista considera positiva, chegou a vez de se apresentarem em Portugal, hoje no Porto, no Hard Club, e amanhã em Lisboa, no LAV – Lisboa ao Vivo.
Fat White Family. “Se recusássemos tocar em sítios por onde passou a extrema-direita não saíamos de casa”
Os Fat White Family chegam a Portugal, numa data dupla, para apresentar Serfs Up!. Falámos com Lias Saoudi sobre as mudanças no som da banda.
Como estão a ser estes dias, agora que está prestes a começar uma nova tour?
Não estou mal, um bocado ressacado, para ser sincero. Tenho de aproveitar antes que os concertos comecem.
De onde está a falar? Já não mora em Londres, pois não?
Por acaso, estou aqui esta semana. Não costumo ficar muito tempo no mesmo lugar, ando sempre a invadir a casa dos meus amigos, gosto de mudar de cenário. Morei em Londres durante 13 anos, nunca tinha passado tanto tempo no mesmo sítio e sinto-me em casa aqui, mas é tão caro alugar um espaço, e não quero dividir um apartamento com desconhecidos. Talvez um dia no futuro resolva esse problema.
Como correu a primeira rodada de concertos?
Correram bem. Soube bem voltar a atuar, é o que adoro fazer. Custa-me muito mais o trabalho em estúdio. A receção tem sido incrível. [No Serfs Up!] alterámos o nosso som, temos uma orientação mais eletrónica e estamos todos mais controlados. Ainda conseguimos ser agressivos e violentos, mas não é o mesmo caos do início da nossa carreira, em que perdíamos pessoas a meio do concerto.
A última vez que esteve em Portugal foi em 2016, no Reverence Valada.
Lembro-me desse concerto e tenho boas memórias, apesar de terem ficado a dever-nos 5 mil libras [quase 6 mil euros]. Quando regressar [a Portugal] vou procurá-los, quero o meu dinheiro de volta. [risos] É muito lixado para uma banda como nós, independente e de tamanho médio. Quando nos ficam a dever este tipo de dinheiro, é uma grande perda. Não sei o que aconteceu com a organização, mas adorei o tempo que passámos lá. Quando era mais novo vivia por cima de um restaurante português e comia muita comida portuguesa.
Não sei se está a par da situação, mas a sala de espetáculos no Porto onde vão atuar recebeu um comício do Chega, um partido de extrema-direita português.
Não costumamos ter acesso a esse tipo de informação, mas ouvimos muito sobre as vossas políticas relacionadas com drogas.
Não o incomoda tocar no mesmo sítio onde esteve um partido de extrema-direita?
Eu diria que não tenho nada a ver com isso. É merdoso em qualquer lado, mas se recusássemos tocar em todos os sítios por onde passou a extrema-direita não tocávamos em lado nenhum e tínhamos de ficar fechados em casa para não lidar com estas merdas. [risos]
Há um músico português, Filipe Sambado, que boicotou o Hard Club.
Não conheço o espaço nem nunca tinha ouvido falar dele. É um entre os cem concertos que vou dar, mas sinto que vou ter de investigar o assunto. É uma questão sensível, mas a minha consciência está limpa.
Falou de uma mudança de som na banda. Como reagiram os fãs?
Tem corrido bem, não foi uma mudança assim tão grande, não é como se tivéssemos começado a fazer música clássica ou algo parecido. Acho que é uma progressão para o que tínhamos vindo a desenvolver.
Sente que este estilo é mais propício para passar a vossa mensagem?
Sinto que fazemos o que fazemos por causa das influências que andamos a consumir, mas as coisas precisam de mudar pela nossa sanidade. Não queremos repetir-nos demasiadas vezes, o que não é fácil: por um lado, não queremos tornar-nos uma caricatura de nós próprios, mas, por outro, não podemos expressar-nos de uma forma que deixe de fazer sentido com aquilo que somos e deixe de fazer sentido com a narrativa que temos construído ao longo da nossa carreira.
Consegue viver apenas da música, atualmente?
Não vivo num luxo, mas diria que sim. [Antes de encontrar estabilidade] fiz muitas coisas. Fiz pizas, ensinei inglês, trabalhei num museu… tive todo o tipo de trabalhos. Teve de ser assim. Enquanto estávamos naquele limbo da “terra de ninguém”, antes de assinar com uma editora e ficar popular, temos de ter trabalhos merdosos para conseguirmos sustentar-nos. Foi um período complicado.
Agora tem um estilo de vida mais calmo?
Posso dizer que evito passar mais tempo na cidade e procuro ficar mais tempo em casa. Sinto-me mais velho, relaxado e maduro, já não tenho aquela tentação de cometer tantos excessos. Penso mais nas consequências espirituais e psicológicas.
Pode falar um bocadinho da sua vida em Sheffield?
As pessoas e os arredores são muito bonitos, mas a cidade, um terreno pós-industrial, é muito sombria e deprimente. É muito diferente de Londres. Sheffield é muito mais pequeno e calmo, mas é um bom sítio para trabalhar e completar objetivos.
Vocês sempre foram extraterrestres na cena musical londrina. Agora que estão ainda mais longe, sentem que estão ainda mais deslocados?
Há sempre um elemento de estranheza desde que começamos a fazer música. Há uma parte de mim que quer que sejamos aceites e canonizados, mas há outra parte que se sente muito orgulhosa por ainda não nos terem posto na televisão neste país.
A vossa música também é muito diferente do resto do rock que tem vindo a fazer-se mais recentemente em Inglaterra, com os IDLES ou os Black MIDI.
Acho que já não somos uma banda de guitarra. Começámos a ouvir outras coisas como folk ou eletrónica. Já não me identifico com nenhum desses grupos que acabaste de citar, com influências de post-punk. Os Black MIDI até são porreiros, são estranhos, experimentais e estão a fazer a sua cena, gosto disso, mas os IDLES são horríveis. Tentam aproveitar-se dizendo que adoram os imigrantes e tentam fazer dinheiro sob esse signo [o pai de Lias é natural da Argélia], mas para mim é hipócrita da parte deles, uns disparates pós-verdade. Por isso, não estou preocupado em não me enquadrar. Parece-me uma moda este tipo de woke rock, para o qual não tenho muita paciência.
Quando faz concertos, ainda se sente da mesma forma como quando tocava em espaços mais pequenos?
Demora-se algum tempo até se estar confortável em palco, mas a chave é tratar esse espaço como se fosse a nossa sala de estar. Temos de nos sentir como se estivéssemos em casa, independentemente do sítio. [Um concerto] é um ritual em que as pessoas se juntam e dão tudo. A chave é tornar tudo o mais íntimo possível, o que pode ser complicado quando se toca num espaço grande ou num festival.
Ainda tenta ter uma interação física agressiva e intensa com os fãs?
Sim, a maioria das vezes. Passo a maior parte do tempo dos concertos no meio da audiência e gosto dessa sensação. Somos só um monte de pessoas numa sala com uns instrumentos, não é como se estivéssemos no cinema.