Hoje às 11 da noite em Londres e Lisboa, depois da meia-noite noutros sítios tidos por capitais de Estados da União Europeia (UE), o Reino Unido (RU) abandona a UE. Mentira. Hoje não acontece rigorosamente nada de novo a não ser para o pessoal político e diplomático britânico, que deixa de ter lugar marcado à mesa das instituições europeias (Parlamento e Conselho), com excepção da equipa negocial do day after. Os aviões vão continuar a voar de e para o continente, os navios cruzarão o canal da Mancha nos dois sentidos, os cidadãos britânicos e os da União Europeia circularão como dantes, seja como trabalhadores, seja como estudantes ou turistas. O dia 31 de Janeiro, data do Brexit formal, marca o início da contagem de um prazo para a negociação do Brexit substancial: até ao final de 2020 há que negociar o conteúdo das futuras relações do RU com a UE.
Como em tudo na vida, há pelo menos três soluções possíveis. Desde logo, e à semelhança do que aconteceu com o Brexit formal, será sempre possível adiar o real Brexit, seja prolongando o período negocial, seja incluindo um período transitório adicional autónomo depois de concluídas as negociações.
Já no que respeita ao conteúdo das negociações há dois patamares de ambição. O minimalista, o skinny agreement, como é pejorativamente referido nos mentideros de Xelas, um acordo vago e que deixará muitas questões em aberto ou um acordo que garanta a fluidez na circulação de pessoas, mercadorias e capitais entre o RU e a UE.
O Governo Boris i tinha um programa político simples: concretizar o Brexit formal. Graças à boa execução deste programa chegou o Governo Boris ii, com uma surpreendente maioria de 80 deputados. Tal significa que Boris pode, durante toda uma legislatura e graças ao Fixed-term Parliaments Act, fazer o que lhe apetecer. E o que lhe apetece mais, com ajuda do Dr. Frankenstein da política actualmente residente no n.o 10 de Downing Street (aka Dominic Cummings), é chegar à liderança do Governo Boris iii. Para que tal aconteça, o programa político de Boris ii não se traduzirá no requentar da cartilha liberal thatcherista. Boris ganhou as eleições com os votos de quem nunca tinha votado tory. Este eleitorado pode não gostar da União Europeia mas tem, como a maioria dos britânicos, uma saudável preocupação com a protecção do ambiente, dos consumidores, o sistema nacional de saúde e a segurança alimentar. Tal impossibilitará uma orgia de desregulamentação nestes sectores, quer directamente, por via da alteração da legislação nacional, quer pela celebração de um acordo de comércio livre com os EUA. Mas a necessidade de agradar a este eleitorado não afastará a tentação de transformar o RU numa Singapura à porta da UE, com dumping fiscal e da regulação financeira.
A chave da negociação está na definição de um level playing field regulatório entre a UE e o RU. Como em qualquer processo negocial bem-sucedido, será preciso encontrar fórmulas que permitam criar valor que possa ser partilhado de forma equitativa. Tentativas maximalistas de exacerbar a liberdade regulatória por parte do RU ou de impor de forma inflexível o quadro regulatório da UE conduzirão a um skinny agreement. E esta é uma má solução, que reduzirá o potencial de crescimento do RU e da UE.
A negociação do Brexit formal mostrou as fraquezas negociais do RU (incapacidade de garantir uma posição nacional com apoio parlamentar, de quebrar a solidariedade da UE, de separar o Brexit formal do substancial). A negociação do Brexit substancial poderá mostrar as limitações da UE face aos EUA, China e Rússia.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990