Comemoram-se esta semana 75 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz, representação edificada do maior genocídio da História contemporânea. Atrás daqueles portões, cuja imagem se transformou no pesadelo de muitas gerações, encontrava-se uma das peças mais monstruosas da máquina de extermínio em massa conhecida por Holocausto. Seis milhões de judeus, dois a três milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, dois milhões de polacos, cerca de 1,5 milhões de ciganos, 200 mil deficientes, dissidentes políticos e religiosos, 15 mil homossexuais e cinco mil Testemunhas de Jeová, a que se somam milhões de civis soviéticos. Simbolicamente, Auschwitz é a sepultura de todos. Celebramos a sua libertação como quem toma a vacina contra uma peste e prometemos ser guardiões da memória do dia em que se deu o triunfo da humanidade.
A efeméride foi motivo de reunião de mais de 50 chefes mundiais de Estado em Jerusalém, cidade outrora prometida ao diálogo e à paz mas que, entretanto, foi oferecida por Donald Trump a Benjamin Netanyahu como uma pedra em cima da solução dos dois Estados. Poucos dias depois, os mesmos líderes apertaram as mãos para apresentar o “acordo do século” para o Médio Oriente. Um acordo sem a participação da Palestina que rasga meio século de decisões da ONU e legaliza todas as ocupações ilegais de territórios cometidas por Israel à custa do roubo, assassínio e miséria do povo palestiniano. Mas nada disso foi assunto em Jerusalém, onde marcaram presença, além de Marcelo, alguns representantes dos Governos mais xenófobos, racistas e autoritários do pós-ii Guerra Mundial.
Sim, Auschwitz é uma memória poderosa, mas será suficiente para nos salvar? Por outras palavras, nunca esqueceremos a História mas seremos capazes de aprender com ela? O equívoco desta pergunta é frequentemente convocar ao imobilismo das lições aprendidas, como se a memória de uma tragédia fosse suficiente para prevenir outra no futuro, como se não houvesse um tempo presente em que somos autores do processo histórico que mais tarde lamentaremos: “Como foi possível?”
Mas como é possível agora? O ódio enquanto instrumento de manipulação política, o discurso dos “parasitas da sociedade”, a justificação da violência contra determinados grupos étnico-raciais, a proposta assumida de sufocar povos inteiros em pequenas Faixas de Gaza, a abominação da diferença pela afirmação agressiva de “um tipo” de pessoa, de família, de sexualidade, de vida. De um “nós” contra “eles”. A discriminação disfarçada de meritocracia. O autoritarismo como promessa de segurança. A defesa mais violenta das elites mascarada de novidade antissistema. Nenhum país acorda um dia no meio de um genocídio sem ter lentamente desumanizado as suas vítimas pela exclusão social, e isso é sempre coisa do “agora”.
As memórias servem-nos porque transmitem valores: democracia, igualdade, direitos humanos, paz, solidariedade, justiça, liberdade, humanismo, direitos sociais. A destruição do passado, o fim da memória, não é o esquecimento. É a substituição desses valores por outros que se tornam hegemónicos: o medo, o ódio, o individualismo, o senso comum de uma moral decrépita tornam-se alicerces de uma nova casa em que a fotografia de Auschwitz é apenas isso, uma imagem do passado sem relação com o presente.
A disputa da memória é a disputa dos valores nas decisões de hoje. O triunfo da humanidade está em olhar para a perseguição dos judeus e ver Auschwitz. Olhar para a discriminação da comunidade cigana e ver Auschwitz. Olhar para a morte dos refugiados e ver Auschwitz. Olhar para a ocupação ilegal das terras palestinianas e ver Auschwitz. Olhar para a deportação dos imigrantes e ver Auschwitz. Olhar para a xenofobia dos discursos atuais e ver Auschwitz. E, de cada vez que alguém justificar qualquer uma destas coisas, aprender como foi possível Auschwitz.
Deputada do Bloco de Esquerda